Moncarapacho, 26 de dezembro de 2041
Se reparardes na foto, que em cima esta cartinha, vereis que aquela criança “está a catar estrelas de felicidade, que caíram durante a celebração na escola, nesta última sexta-feira”. Era a minha amiga Regina quem legendava a foto, celebrando a justa premiação, que a Maré recebera.
Conheci a Maré da Granja Viana, decorria a primeira década deste século, quando ainda dava pelo nome de Kid’s Home. O jardim de infância de então era mesmo um lar de crianças. Ali, se respirava sensibilidade, se aprendia amorosidade.
Com a ampliação do projeto para o Fundamental, o nome “Maré” se ajustou a princípios partilhados pela comunidade. Dizia a minha amiga Regina que a palavra “Maré” representava “o fluir das águas através das forças da natureza. Metaforicamente, significava a força que impele as ações humanas, com avanços e recuos, fluxos e refluxos”.
Era esse o espírito do projeto, de qualquer projeto humano e, se a humana e freiriana incompletude, questionava práticas presas ao passado e recusava fundamentalismos, ali, se reconhecia que “o ser humano deve manter-se permanentemente “em obras”.
A Maré era um dos projetos que, no início dos anos vinte, apontava o rumo da mudança e inovação. Os espaços de aprendizagem dialogavam diretamente com a criança, com o seu corpo, instigavam a curiosidade. No saboroso livro “Picolé e Sorvete para Todos” se acrescentava: “a livre exploração acontece em espaços onde a criança consiga interagir, transformar, se comunicar pelo corpo, pela mente e pela alma”.
O projeto já era reconhecido como “referência em inovação e criatividade na Educação”. Era justo esse reconhecimento, conferido pelo Grupo de Trabalho criado pelo ministro Renato Janine, em 2014. Nos idos de vinte, a Maré era um dos raros projetos sobreviventes dos 178 a que foi conferida visibilidade social. A sobrevivência e as premiações, como a que mereceu, no dezembro de 2021, talvez se devessem ao fato de a Maré já ser a gênese de uma comunidade:
“A Maré compreende que a ação educativa só se realiza na soma e eco de esforços de diversos atores. Somos pais, crianças, professores, cozinheiros, porteiros, tutores, marceneiros, arquitetos, jardineiros, ambientalistas, músicos e… todo o bairro!”
Aquela era uma escola verdadeiramente “pública”, de iniciativa particular. A todos assegurava o direito à educação, a uma educação integral, humanizada, que a escola dita “pública” desse tempo continuava a negar.
Havia escolas da rede pública que “não tinham vaga para projetinhos de marginal”, porque já tinham “demasiadas classes dos burros” (sic). Mais de dez mil escolas estavam sem abastecimento de água. Em quase quatro mil, não havia energia elétrica. O investimento público na educação infantil caíra 86%.
Ao cabo de meio século de professor de escola pública, eu acompanhava projetos, que, por dentro, resistiam à desagregação do chamado “sistema público de ensino”. Nutria uma profunda admiração por educadores esforçados e esperançosos, que enfrentavam uma administração intelectual e moralmente corrupta. Colaborava com secretarias de educação dirigidas por gente sábia e honesta. E era levado a reconhecer que teria de contar com a iniciativa privada, para operar a mudança da “escola pública”.
Quando não esperava gratas surpresas, genuínas intenções surgiram. Além do amigo André – já aqui vos trouxe o seu depoimento – outros empresários despertavam para a necessidade de trocar o marketing demagógico da maioria das empresas do ramo por um lucro legítimo, assente no bem-estar das crianças.
Por: José Pacheco
322total visits,4visits today