Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLII)

Ribeira do Seissal, 2 de janeiro de 2042

Nos idos de vinte, eu criara o hábito de, em cada manhã de domingo, enviar uma oferenda virtual aos meus amigos, acompanhada de votos de uma semana feliz. 

Ontem, quando vasculhava o baú das velharias, achei uma cartinha enviada no segundo dia do já distante janeiro de 2022. Rezava assim:

Apesar da tua tenra idade, querido neto – terias, talvez uns três anitos –, já havia quem te dirigisse a pergunta sacramental: 

“O que queres ser, meu menino, quando fores grande?” 

Essa pergunta, quando dirigida a uma criança, soava como xingamento. Criança não iria ser; ela era criança! 

Certamente, não te recordarás, mas, como virias a ser autor de ti, não respondeste. Pensarias: O que é que eu quero que seja o que eu quero ser? 

Não foi por acaso que assim agiste. O Rubem dizia que quem deixava morrer a criança grande, que tinha em si, não virava adulto – adulterava-se. 

Os seres humanos, que são crianças crescidas, renascem a todo o momento. Cada manhã é mais um pretexto para recomeçar. Ritualizar o crepúsculo de cada dia, ou o primeiro segundo de um novo ano, tanto faz. Uma criança lendo um livro, ou uma criança mais crescida escutando uma suíte de Bach, tanto faz. São gestos de todos os dias, que restituem aos dias, que despontam ou cessam, o suave mistério da vida sem tempo calculado. 

Talvez se vá por aí, até ao alcançar do dom da imortalidade, que os alquimistas, em vão, perseguiram, e que os poderosos nunca lograram comprar. É simples penetrar a harmonia de um universo sem princípio nem fim. Basta reconhecer essa verdade indelével no sereno respirar de uma criança. 

Quando eu ia a alguma escola, conversava com os alunos. Perguntava-lhes o que queriam fazer, saber, o que queriam fazer, o que queriam ser. Numa faculdade, idêntica pergunta fiz aos meus alunos: 

“Pedro, o que queres ser?”

“Você sabe. Quero ser professor.”

“Sim, claro! Por isso estás aqui. Mas, que professor queres ser? Que pessoa queres ser?”

O Pedro respondeu:

“Quero ser digno de mim. Não atraiçoar ideais. Não vender a alma a troco de benesses. Não ter vergonha de ser coerente, nem me arrepender de ser honesto para mim e para os outros.”

Hoje, o Pedro está perto da aposentadoria, mas ainda é professor universitário, um professor que não se queda pela especulação teórica, que sobe ao chão da escola, que mergulha inteiro nos afazeres dos educadores, partilhando dificuldades, buscando soluções.

Na universidade dos idos de vinte, havia poucos Pedros. O que não faltava era freiriano não-praticante, escolanovista não-praticante, socioconstrutivista não-praticante. Foi-me dado o privilégio de conviver com excepções. Em 2022, convidei-os para acompanhar movimentos de renovação, que surgiam por toda a parte. 

O melhor presente desse Natal foi um e-mail recebido de um amigo, que já não via, há muito tempo. Comentava uma das minhas intervenções públicas e assim concluía a sua mensagem:

“Caro amigo, que presente o seu texto! Eu havia esquecido o quanto seus escritos, sinceros e lúcidos, me acordam e lembram o que é educação. 

A universidade quase apagou essa lembrança em mim. Mas, neste ano, finalmente, recuperei a minha liberdade, com a saída da universidade. Aos poucos, vou recuperando a saúde da minha alma, longe de tanto intelectualismo estéril, sem finalidade e sem luz.

Gratidão, meu amigo! Você nem imagina o quanto!”

Não era arrependimento. Era prova de que eu estava certo, quando não deixava de acreditar que os professores (até mesmo os teoricistas não-praticantes e os áulicos) se poderiam transcender e transformar em seres humanos sublimes.  

 

Por: José Pacheco

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