Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLIV)

Vale de Santiago, 4 de janeiro de 2042

Exatamente, no quarto dia do janeiro de há vinte anos, no Alentejo profundo, a Cristina reuniu famílias, professores e lideranças locais, num encontro fundador de comunidade. Ao vosso avô foi dado o privilégio de nele participar. Uma comunidade ousava ignorar as vozes de mau agoiro e o autoritarismo de lideranças toxicas

Numa velha pen drive, consegui reaver o documento que essas pessoas enviaram para o Agrupamento de Escolas, em 2021. Até tive a honra de ser citado no preâmbulo da “Proposta”:

“É necessário humanizar a educação, concretizar educação integral. A modernidade está nos tornando individualistas, portanto, precisamos aprender mais sobre convivência e diálogo, sendo oportuno falar de novas construções sociais. A partir do que somos, do que sabemos e do que fazemos, urge afirmar a possibilidade de conceber “comunidades de aprendizagem”. (…) Uma construção social formada por pessoas que habitam o mesmo território, físico ou virtual, que partilham valores, uma mesma visão de sociedade, partilham e produzem conhecimento, operando transformação social, melhorando a qualidade de vida em comum, através de projetos locais de desenvolvimento sustentável.”

Seguia-se um enunciado de intenções, reflexos de uma nova visão de mundo. Aquela boa gente sabia muito bem o que queria para os seus filhos e o que convinha à sua comunidade. Vede:

“Somos um grupo de pais, educadores e professores com o grande desejo de repensar a forma como se processa o ensino-aprendizagem na nossa escola. Pretendemos criar uma abordagem pedagógica que beneficie, de uma forma holística, a educação, os interesses e a felicidade das crianças e de todos os educadores envolvidos neste percurso de construção de uma verdadeira comunidade de aprendizagem.

A escola deve ser um local que promova o desenvolvimento da criança em todos os seus aspetos: físico, emocional, mental e espiritual. Os responsáveis pela educação devem inspirar e instigar a criança para além das suas capacidades, respeitando os seus interesses específicos e individuais, promovendo a sua responsabilidade e autoconhecimento. Educando pelo exemplo, usando formas de comunicação não violenta, defendendo valores como a compaixão, a integridade, a generosidade e o respeito.

As áreas de conhecimento devem organizar-se de forma cooperativa e as aprendizagens devem ser preferencialmente experimentais (aprender fazendo, contrariamente ao que acontece quando se pratica a instrução), em contacto com a natureza, a região, o mundo. A vida e a aprendizagem devem estar intimamente relacionadas.

Os grupos de aprendizagem devem ser flexíveis, organizados com crianças de idades mistas. As crianças são parte importante na tomada de decisões na escola. E os pais e toda a comunidade envolvente são convidados a participar na vida da escola”.

Como vedes, nesse tempo, os leigos tinham maior consciência do necessário do que muitos teóricos profissionais. E melhor interpretação da lei: compreenderam que a lei estava do seu lado, do lado de quem ousava mudar e inovar.

O prometido é devido…  a partir de hoje, vos falarei de inciativas – algo a que se convencionou chamar “projetos” –, que acompanhei, nos idos de vinte. Nesse tempo, muitas dessas iniciativas ainda eram vítimas do ataque de porquenãos (certamente vos recordais desses nocivos personagens, descritos nas cartas para a Alice). Muitas oportunidades de mudança se goraram porque “não era oportuno”, “não havia condições”, “a direção não aprovava”, “alguém não permitia…”. 

 

Por: José Pacheco

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