Relíquias de Gandu, 8 de fevereiro de 2042
Ramalho Eanes foi Presidente da República de Portugal. Na década de 1980, inspirou a criação de um partido. Esse partido acabou igual aos restantes e se extinguiu. Nos idos de vinte, um “meme” com a sua imagem e uma citação foi difundido nas redes sociais. Nele estavam inscritas as seguintes frases:
“A desobediência civil não é o nosso problema. O nosso problema é a obediência civil.
O nosso problema é que pessoas por todo o mundo têm obedecido às ordens de líderes e milhões têm morrido por causa dessa obediência.
O nosso problema é que as pessoas são obedientes por todo o mundo face à pobreza, fome, estupidez, guerra e crueldade.
O nosso problema é que as pessoas são obedientes enquanto as cadeias se enchem de pequenos ladrões e os grandes ladrões governam o país. É esse o nosso problema”.
Não havia qualquer registo de que Eanes tivesse proferido essa declaração, ou escrito algo similar. Essa citação teria sido retirada de um livro intitulado “Disobedience and Democracy: Nine Falacies on Law and Order”, publicado em 1968, da autoria do historiador norte-americano Howard Zinn.
O meme circulou nas redes sociais em sucessivas vagas de desinformação. Estávamos num tempo de fakenews, que ganhavam eleições.
No dia 7 de fevereiro de há vinte anos, a China fechava uma cidade com três milhões e meio de pessoas, para conter o avanço da pandemia. No Distrito Federal, a Média Móvel da Covid-19 chegava a 763 mortes, o maior número desde agosto de 2021. Apenas um quarto das crianças em idade escolar estava vacinada. A variante Ômicron espalhava-se sem controle. Mas falava-se de… “abertura do ano letivo”.
No Brasil um jovem congolês era barbaramente assassinado, engordando estatísticas de violência gratuita. Mensagens racistas e xenófobas surgiam em escolas e universidades da cidade de Lisboa. “Fora com os pretos”, “Europa aos europeus. Viva a Europa branca”, “Zucas voltem para as favelas”, “Por uma Católica sem escarumbas” foram algumas das frases que se podiam ler nas paredes de instituições de ensino, entre as quais a Universidade Católica, e escolas secundárias vandalizadas.
Nas redes sociais, eram partilhadas fotografias que mostravam frases escritas contra a comunidade cigana, negra e contra cidadãos brasileiros. Além das mensagens racistas e xenófobas inscritas dos estabelecimentos de ensino, os seus autores deixaram nas paredes o símbolo comum, associado a um movimento de extrema-direita.
Numa movimentada rua de Paris, sem que ninguém o tenha socorrido, permaneceu nove horas caído e morreu por hipotermia um homem de 85 anos, porque os algoritmos que comandavam as câmeras de vigilância das ruas não estavam programados para detectar aqueles que tombavam.
De acordo com o Mapa da Violência, entre doze e treze mulheres eram mortas, todos os dias. Segundo dados divulgados pela ONU, o Brasil era considerado o quinto país do mundo com maior número de feminicídios.
O que teria tudo isso a ver com a Educação? Giroux, na obra “Teoria Crítica e Resistência em Educação”, avisava que, com os seus cronogramas e relacionamentos hierárquicos, a rotina da maior parte das salas de aula atuava como um freio à participação e aos processos democráticos.
Um “sistema” nascido da espúria aliança firmada entre políticos corruptos e pedagogos corruptos era a causa de atrocidades dessa natureza. Talvez o dito do Zinn fizesse sentido. O nosso problema era a “obediência civil”. O “sistema” deveria ser erradicado. Insanidades deveriam ser desobedecidas.
Por: José Pacheco
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