Burgães, 9 de abril de 2042
“Bom dia! Recebi, ontem, uma denúncia, que chegou à ouvidoria. Enfim! Seu aviso de que isso aconteceria não foi em vão.
Já respondi à denúncia. Veio de forma anônima, mas eu suspeito fortemente de uma “amiga” do trabalho. Descontextualizou uma fala minha, pediu minha demissão, atacou junto o diretor etc. Enfim, vamos que vamos!”.
No meio universitário – que era origem da situação de “denúncia”, também se confirmava que, se o maior aliado de um professor era outro professor, o maior inimigo de um professor ético e coerente era o professor da escola mais próxima, ou da sala do lado. Ao mínimo gesto de mudança fundamentada correspondia a reação de um conservadorismo sem fundamento. E, numa respeitável instituição universitária dos anos vinte, a “denúncia anônima” era arma de arremesso contra quem ousava questionar, alterar o status quo e… cumprir a lei.
Tentei tranquilizar a autora dessa mensagem.
“Não te preocupes. Tens o saber-fazer e a lei do teu lado. Mas, será preciso que essa cobarde denúncia não fique impune. Deverás exigir acareação. E, posteriormente, até mesmo um pedido indemnização por danos morais.
Se precisares da minha ajuda e da do nosso grupo jurídico, diz-me. Eles te ajudarão”.
No Portugal dos anos oitenta do século passado, a Lei de Bases do Sistema Educativo, no seu artigo 45º, estabelecia o primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa. Esse artigo, que se saiba, nunca foi revogado e, com sucessivas revisões da lei, chegou a ser o 48º
O terceiro parágrafo do artigo 48º dessa lei estabelecia o cumprimento de um claro princípio. Considerava esse parágrafo como essencial, quase “cláusula pétrea” da lei:
“Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”.
Mas, cadê o cumprimento da lei?
Antes e depois da publicação da LBSE, numa escola do norte de Portugal, a lei se cumprira. Até então, não havia notícia de que outro “estabelecimento de educação e ensino”, tivesse celebrado um verdadeiro contrato de autonomia com o ministério. Não tinha conhecimento da existência em outras escolas de uma Direção sem diretor. Nem de um Conselho de Direção constituído por uma maioria de membros da comunidade, um órgão em que os professores eram minoria.
A generalidade das escolas continuou a ser controlada por diretores sujeitos ao “dever de obediência hierárquica”.
Cadê a autonomia da escola? Mesmo que o diretor não concordasse com as determinações de superiores hierárquicos, ainda que argumentasse com “critérios de natureza pedagógica e científica”, era obrigado a cumprir ordens baseadas em “critérios de natureza administrativa”.
Isso mesmo, queridos netos. Hoje, quando as escolas já gozam de real autonomia, custa acreditar que, há vinte anos, a generalidade dos “estabelecimentos de educação e ensino” se encontrassem fora da lei.
A burocracia instalada na chamada “Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares” fazia prevalecer o controle de uma ensinagem assegurada por zelosos funcionários, à margem de qualquer critério de natureza científica. Para a DGEST (a sigla era, mais ou menos, essa) as escolas eram prédios sob remota administração da… DGEST.
Naquele tempo, era raro encontrar uma escola, ou um agrupamento de escolas, onde prevalecessem critérios de natureza pedagógica e científica. Prevaleciam outros critérios, as escolas sobreviviam nas estreitas margens de uma autonomia mitigada.
Por: José Pacheco
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