Vila das Aves, 10 de abril de 2042
No abril de há vinte anos, aconteceu algo inédito. Passei por Vila das Aves, sem descer do comboio. Consegui conter o ímpeto de o fazer e de subir a encosta de Negrelos, para ajudar a refazer a Ponte. Daquilo que, entretanto, se passou, vos falarei em breve.
Nesse dia, viajei de Guimarães para o Porto, ao encontro da Daniela, de uma mãe de nacionalidade brasileira e de uma mãe portuguesa. Estavam preocupadas com o futuro escolar dos seus filhos. Num encontro realizado na sede do agrupamento de escolas, no qual reencontrei o amigo Albino e outros velhos conhecidos, foi decidido ingressar no projeto de criação de protótipos de comunidade de aprendizagem. O apoio do diretor do agrupamento mobilizou professores e tranquilizou aquelas mães.
Queridos netos, perguntastes por que passei por Vila das Aves e não fui à Ponte, e vos satisfaço a curiosidade. Não fui à Ponte, porque ela já não estava em Vila das Aves. E porque não sei por onde andaria o projeto.
Durante muitos anos, eu encaminhei milhares de educadores (professores, pais, pesquisadores) para a Escola da Ponte. Era um projeto digno de se ver, a única escola onde, efetivamente, o aluno era o centro do processo de aprendizagem.
A partir de meados da primeira década deste século, as “impressões” e as conclusões dos estudos, que até mim chegavam por mãos amigas, provocavam inquietação. Quis crer que os olhares externos talvez fossem desatentos. Possivelmente, as entrevistas teriam sido mal conduzidas e os inquéritos mal concebidos. Quarenta anos depois, a inquietação me fez voltar à escola, que ajudara a criar. Do que vi vos falarei, em breve.
Durante essa visita, apenas identifiquei o “Fazer a Ponte” numa sessão de Assembleia a que assisti. Esse dispositivo de aprendizagem da cidadania no exercício da cidadania fora melhorado, sofrera inovação. Aquelas crianças, aqueles jovens dariam lições de democraticidade a estudantes universitários e a muitos dos políticos da época. Porém, a Lei de Bases os excluía. Vede o que prescrevia:
“A direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, num e noutro caso segundo modalidades a regulamentar para cada nível de ensino. A participação dos alunos nos órgãos referidos no número anterior circunscreve-se ao ensino secundário”.
Por quê apenas aos estudantes do ensino secundário, se as crianças da Ponte revelavam muito maior maturidade democrática do que esses estudantes e até mesmo do que muitos professores universitários?
Encontrei resposta na Lei de Bases:
“A direção de todos os estabelecimentos de ensino superior orienta-se pelos princípios de democraticidade e representatividade e de participação comunitária. Os estabelecimentos de ensino superior gozam de autonomia científica, pedagógica e administrativa. As universidades gozam ainda de autonomia financeira.
Que tipo de autonomia havia no “superior”? Por que razão se privava de autonomia financeira o “inferior”? Mistério!
A lei impunha uma menoridade cidadã ao ensino “inferior”, menoridade democrática aos seus alunos e a desqualificação profissional dos seus professores.
Pelo abril de há vinte anos, decorriam encontros de educadores conscientes de que a sua escola funcionava à margem da lei, educadores que tinham decidido “parar de descumprir a lei”. Foi o que lhes ouvi dizer.
Por: José Pacheco
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