Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLIV)

Vila das Aves, 10 de abril de 2042

No abril de há vinte anos, aconteceu algo inédito. Passei por Vila das Aves, sem descer do comboio. Consegui conter o ímpeto de o fazer e de subir a encosta de Negrelos, para ajudar a refazer a Ponte. Daquilo que, entretanto, se passou, vos falarei em breve.

Nesse dia, viajei de Guimarães para o Porto, ao encontro da Daniela, de uma mãe de nacionalidade brasileira e de uma mãe portuguesa. Estavam preocupadas com o futuro escolar dos seus filhos. Num encontro realizado na sede do agrupamento de escolas, no qual reencontrei o amigo Albino e outros velhos conhecidos, foi decidido ingressar no projeto de criação de protótipos de comunidade de aprendizagem. O apoio do diretor do agrupamento mobilizou professores e tranquilizou aquelas mães. 

Queridos netos, perguntastes por que passei por Vila das Aves e não fui à Ponte, e vos satisfaço a curiosidade. Não fui à Ponte, porque ela já não estava em Vila das Aves. E porque não sei por onde andaria o projeto.

Durante muitos anos, eu encaminhei milhares de educadores (professores, pais, pesquisadores) para a Escola da Ponte. Era um projeto digno de se ver, a única escola onde, efetivamente, o aluno era o centro do processo de aprendizagem. 

A partir de meados da primeira década deste século, as “impressões” e as conclusões dos estudos, que até mim chegavam por mãos amigas, provocavam inquietação. Quis crer que os olhares externos talvez fossem desatentos. Possivelmente, as entrevistas teriam sido mal conduzidas e os inquéritos mal concebidos. Quarenta anos depois, a inquietação me fez voltar à escola, que ajudara a criar. Do que vi vos falarei, em breve.

Durante essa visita, apenas identifiquei o “Fazer a Ponte” numa sessão de Assembleia a que assisti. Esse dispositivo de aprendizagem da cidadania no exercício da cidadania fora melhorado, sofrera inovação. Aquelas crianças, aqueles jovens dariam lições de democraticidade a estudantes universitários e a muitos dos políticos da época. Porém, a Lei de Bases os excluía. Vede o que prescrevia:

“A direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, num e noutro caso segundo modalidades a regulamentar para cada nível de ensino. A participação dos alunos nos órgãos referidos no número anterior circunscreve-se ao ensino secundário”. 

Por quê apenas aos estudantes do ensino secundário, se as crianças da Ponte revelavam muito maior maturidade democrática do que esses estudantes e até mesmo do que muitos professores universitários?

Encontrei resposta na Lei de Bases:

“A direção de todos os estabelecimentos de ensino superior orienta-se pelos princípios de democraticidade e representatividade e de participação comunitária. Os estabelecimentos de ensino superior gozam de autonomia científica, pedagógica e administrativa. As universidades gozam ainda de autonomia financeira. 

Que tipo de autonomia havia no “superior”? Por que razão se privava de autonomia financeira o “inferior”? Mistério!

A lei impunha uma menoridade cidadã ao ensino “inferior”, menoridade democrática aos seus alunos e a desqualificação profissional dos seus professores.  

Pelo abril de há vinte anos, decorriam encontros de educadores conscientes de que a sua escola funcionava à margem da lei, educadores que tinham decidido “parar de descumprir a lei”. Foi o que lhes ouvi dizer.

 

Por: José Pacheco

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