Góis, 28 de abril de 2042
Queridos netos, no abril de há vinte anos, andarilhei por terras do Alto Minho acompanhado por pessoas de bondade em estado puro. Em Crasto, fui acolhido pela família do João. Depois, viajei para Vieira, ao encontro de educadores de um agrupamento de escolas, que viria a integrar o projeto das comunidades.
Terminei o périplo desse dia em Braga. No decurso do evento no Conservatório de Música, proporcionado por um extraordinário ser humano de nome Jaqueline, e no encontro com professores de Religião e Moral, propiciado por outro extraordinário ser humano chamado Paulo, pude comprovar que uma nova geração surgia disposta a operar transformações. Mas, a sua generosidade não era suficiente. Ajudei-os a transformar sonhos em realidades.
O “como fazer” estava acoplado ao “por que e porquê fazer”. Isso mesmo: a par da ajuda prática, resolvi tornar pública parte da construção teórica, que se vinha acumulando na memória do meu velho computador, aguardando testagem.
Hoje, pretendo falar-vos dos círculos de aprendizagem, enquanto projecto existencial. E é bom que vades guardando estas bagatelas, mais ou menos, teóricas, porque eu não duro sempre e vos cumpre continuar a conferir-lhes significado, a revê-las, a atualizá-las.
Naquele tempo, o círculo de aprendizagem concretizava algumas das muitas correntes do campo da aprendizagem: a livre escolha do objecto, assim como o momento e o lugar, considerando o sujeito de aprendizagem no contexto de uma relação comunitária, criando vínculos.
O compromisso do indivíduo com uma prática desse tipo radicava em projectos de existência que, de latentes, se tornavam deliberação, ação. O aprendiz decidia suportar o questionamento da sua prática, a exploração da sua própria identidade, porque se supunha acompanhado de pares com idêntica disposição.
Esse questionamento não era meramente intelectual, mas existencial, um modo concreto de escapar a um destino pré-estabelecido. Para tal, o círculo oferecia ainda o testemunho alheio, que confirmava ou contrariava o vivido pessoal, prefigurando a utopia dos pequenos grupos não uniformizados, que escapavam ao círculo vicioso da reprodução através da reinvenção de formas criativas de resistência.
As utopias não tinham morrido: transformavam-se. Eram absoluta e urgentemente necessárias como função crítica do real. Nos espaços intersticiais das contradições dos sistemas sociais, seria preciso mobilizar essas energias criativas fundadoras de uma atividade humana não alienada.
Num livro polêmico do início da década de noventa, Fukwyama escrevera:
“Uma forte vida comunitária é, em democracia, a melhor garantia para que os seus cidadãos não se transformem nos últimos homens”.
Reconhecia-se a existência de uma centralidade subterrânea e informal, que assegurava o perdurar da vida em sociedade. Era na direcção dessa realidade que deveríamos olhar. Tratava-se de um desafio para decénios vindouros. Um desafio não desprovido de riscos e obstáculos.
Comparadas às obrigações absolutas, que uniam os indivíduos nas estruturas autoritárias, as comunidades aglutinadas por um interesse próprio comum, demonstravam múltiplas fraquezas. O irracional originário, as inquietações, as errâncias, os desejos, eram cimento forte, mas não suficiente para a sua preservação. Importava vigiar o erro, que nos preservasse de erros alheios.
Não me recordo se lera algures que as instituições eram a medida do Homem, mas sabia que o círculo de aprendizagem poderia ser um aferidor do instituído que oprimia.
Por: José Pacheco
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