Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXXXVIII)

Arruda dos Vinhos, 27 de maio de 2042

Voltando a espanar o baú das velharias, no fundo dessa arca abandonada num sótão e perdida nas dobras do tempo, achei uns papéis, a “Introdução à Pedagogia”. Nessa obra, Mestre Lauro assim dizia:

“Se aceitarmos a definição “o homem é um animal criativo”, podemos afirmar que a maioria dos seres humanos não é da espécie humana, pois grande parcela da humanidade nada cria! 

A que atribuir esta ‘deformação’ dos seres humanos? Evidentemente, à pedagogia.”.

Vozes como a de Lauro eram ignoradas. Prevaleciam ações de deformação suportadas por uma poderosa indústria digital da educação. E Portugal não era excepção. 

Há vinte anos, enquanto o vosso avô trabalhava no chão da escola, ajudando professores a assumir-se numa efetiva autonomia e a “flexibilizar” o currículo, o ministério desperdiçava recursos na realização de mais um “Encontro Nacional de Autonomia e Flexibilidade Curricular”. 

De que autonomia falariam os “especialistas”, se as escolas e os professores a não tinham? E de que “flexibilização” se tratava? Em teoria, talvez, pois a prática desmentia o que nesses encontros se dizia. 

Os jornais davam notícia de que, no decorrer do referido Encontro, uma “especialista em currículos escolares” assim se pronunciara:

“O currículo é a força motriz de um sistema educativo e dá forma à visão que um país tem para a sua educação”, na medida em que, tanto ao nível técnico como político, estabelece “o quê, o como e o para quem” de todos os patamares do processo, abrangendo desde manuais escolares, a infraestruturas físicas e modelos de gestão.”

No sentido de sucesso educativo para todos, a especialista incentivou à confiança nas “palavras maravilhosas” que inspiraram o evento, que decorreu no Europarque: 

“A “autonomia” e a “flexibilidade curricular” exigem muito de todas as partes envolvidas, mas também têm “o poder de realmente inovar e transformar”. 

Até aí, tudo bem. Simpatia quanto bastasse e alguns arremedos de senso comum pedagógico colhidos num qualquer compêndio de ciências da educação ou até mesmo em livros de autoajuda pedagógica. Porém, enveredou por exorbitâncias e chegou mesmo a comparar Portugal a um Rolls-Royce:

“Vocês são o Rolls-Royce dos sistemas de educação. Estão entre os 40 países de topo no mundo da educação”.

A “especialista” poderia ser simpática, agradecida a quem lhe pagara o passeio a Portugal, mas não precisaria de cair em exageros. Chamar Rolls-Royce a uma carroça parada? Atirei o recorte de jornal para o caixote do lixo e pedi a Deus que, mesmo em diferido, lhe perdoasse.

É evidente que a maioria dos diretores de agrupamentos escolares adoraram a intervenção da dita “especialista”. E os representantes dos organismos da tutela deram por bem empregue os milhares de euros gastos no pernicioso Encontro. 

De nada vala cobrir a nudez forte da verdade educacional com o manto diáfano da fantasia pedagógica, mas ainda contaríamos alguns anos e o o desperdício de milhões de euros, até ao desvio de rota, que nos libertaria da lenga-lenga desses “especialistas”. 

Um personagem do drama alimentava em mim uma ténue esperança. Em sentia, ou julgava sentir, serem verdadeiras as intenções do ministro da altura, o João Costa, que assim se manifestava:

“O que me motiva para estar aqui é o combate às desigualdades através da educação. Temos um país muito mais qualificado e não podemos desistir. O pior inimigo do combate às desigualdades é o discurso da meritocracia e alguns instrumentos que eliminámos, como turmas para os de nível alto e para os de nível baixo, segregando à partida”.

 

Por: José Pacheco

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