Vila do Bispo, 1 de julho de 2042
Há cerca de vinte anos, andava por terras do extremo sudoeste português, quando me pediram que fosse ouvido como testemunha, num processo movido pela inspeção de ensino a uma associação local. Era mais uma manifestação com resquícios da prepotência herdada do velho regime e entranhada no íntimo de agentes e funcionários ministeriais desse tempo.
A reunião não decorreu em “campo neutro”. Fui convocado para reunir numa sala da instituição denunciante. Isso mesmo: tratava-se de um processo decorrente de uma denúncia. Senti-me voltando aos idos de setenta e aos inquéritos, aos processos de averiguação e auditorias.
Era raro o mês em que o vosso avô e jovem professor não recebesse a “visita” de inspetores. As denúncias era sempre “anónimas”, mas eu sabia que tinham sido feitas por professores de outras escolas, os mesmos que, aliados a políticos sem escrúpulos, muito prejudicaram a Escola da Ponte.
Ora era porque não tínhamos livro de ponto, ora porque não dávamos aula, ora… tudo servia para nos fazer perder tempo e paciência. Os inspetores chegavam sisudos e severos, ordenavam que lhes que apresentássemos os testes que tínhamos aplicado, que lhes facultássemos o livro de registo de presenças dos alunos e das faltas que tivessem dado (às aulas), as “planificações” (os planos de aula) e outras “minudências”.
Dizíamos-lhes que não marcávamos faltas aos alunos porque nunca faltavam. Mostrávamos que o teste era o instrumento de avaliação mais falível de quantos pudéssemos servir-nos e esclarecíamos que os substituíramos por “evidências de aprendizagem”. Mostrávamos-lhes os projetos e os planos de sujeitos de aprendizagem. Nem para eles olhavam. Os inspetores determinavam que lhes mostrássemos as planificações e nós não as tínhamos para mostrar. Autoritários, exigiam que os mostrássemos, porque era “o que estava na lei”.
“Qual lei?” – perguntávamos. E explicávamos de modo simplificado o que aqueles inspetores deveriam saber e não sabiam acerca de Montessori, Freinet, Dewey, Steiner, Vigotsky, Piaget, Agostinho, Freire… Os inspetores faziam ouvidos de mercador. Dizíamos-lhes que as leis obedeciam a princípios de ordem moral e que deveriam ter fundamento científico.
Dado que a Lei de Bases só surgiria em meados da década de oitenta, os inspetores replicavam:
“Isso não interessa! Sou seu superior hierárquico! – E ordenavam que obedecêssemos, que voltássemos a fazer planificações, a dar aula, a aplicar testes. Enfim! Os inspetores voltavam para o ministério e nós voltávamos para a nossa prática sem planificações de professor, sem testes ou registo de faltas, numa prática feita de efetiva aprendizagem.
Quarenta anos decorridos, fui convocado como testemunha de um processo. Um amigo me disse que a Inspeção não era como antigamente, que havia mudado. Efetivamente, o computador substituía a folha de papel e a caneta de tinta permanente.
A senhora inspetora era afável e não se apresentou como “superiora hierárquica”. Nenhum poder detinha perante um professor aposentado e, não por acaso, formado em ciências da educação. Respeitosamente, demonstrei a inutilidade daquele “auto de inquirição”. Apontei equívocos, contradições, erros contidos no processo. Surpreendida, sem saber o que responder, a senhora inspetora alegou que, como funcionária, apenas cumpria “ordens superiores”.
No julgamento de Nuremberg, os militares hitlerianos assumiam a autoria dos crimes de que eram acusados, alegando que estavam “apenas seguindo ordens de autoridades superiores”.
Por: José Pacheco
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