Santo André, 20 de agosto de 2042
No distante agosto de vinte e dois, nos primeiros dias do meu regresso ao Brasil, encontrei uma São Paulo enregelada. Enquanto tempestades assolavam o Sul, o paulistano tremia de frio e de… medo. Os noticiários eram reflexo do terror instalado no quotidiano:
“Cinco pessoas morriam a cada hora, em brigas de trânsito. Homem mata esposa e filho, incendeia a casa e esfaqueia-se para despistar as autoridades. Policial mata mãe, irmão, esposa e três filhos. Além dos parentes, matou outras duas pessoas a tiros na rua da cidade.”
Nesse distante agosto, o boato de um suposto ataque numa escola estadual mobilizava a Polícia Militar. Uma denúncia surgira nas redes sociais. No Instagram, um aluno vítima de bullying prometia vingar-se dos colegas:
“O bullying da escola vai acabar. Eu vou entrar e matar.”
Em nota, a secretaria da educação dizia ter “tomado providências”.
Escassa era a distância entre a violência nas ruas e a solidão nas escolas, entre as “providências” da administração escolar e as aulas de “educação para a cidadania”. Escassas eram as escolas cidadãs, mas algumas havia.
O moço já tinha feito cinco anos de “educação para a cidadania”, mas não sabia que ainda estava a começar a tirar o curso de “educação na cidadania”. A “lição” seguinte foi-lhe ministrada por um colega mais antigo na escola, quando contestou uma decisão dos professores:
“Eu não gostei nada de o professor ter feito as equipas. Ainda por cima deu barraca, só houve zaragata e não houve futebol mesmo nenhum.”
Ou quando a Marta, no calor de uma discussão, sem abdicar do exercício de cidadania, manifestou compreensão de que o estatuto de professor é o estatuto de professor e não se confunde com o estatuto de aluno:
“Ó professora, eu acho que já percebi. A senhora já aprendeu isto antes de mim, não foi?”
Não se pense que estas situações de “educação na cidadania” eram exclusivas de uma escola isolada. Havia muitas e excelentes práticas, como prova uma carta de um professor-poeta de nome Carlos, que me atrevo a citar:
“Tudo mudou. As crianças já propõem questões, lançam ideias. Acreditam que a opinião delas também vale. E encontraram objetivos: ajudar meninos com dificuldades, ajudar o professor a resolver os casos de mau comportamento e a preparar reuniões.
Agora, a escola é ainda mais deles. Estes momentos têm-me feito refletir muito sobre o percurso que trilhámos até aqui. Pensar em como a Assembleia, no início, era uma coisa enfadonha. Como alguns se fartavam de abrir a boca! Insisti, por saber que estava no rumo certo. Aos poucos, deixei de ser eu a dirigir as reuniões. Comecei a sentar-me, discretamente, a um canto.
Inicialmente, ia metendo a minha colherada, para que a reunião não descambasse em confusão. Cada vez menos o faço. Hoje, participo como qualquer um dos outros. Os outros são as crianças. Para muitos professores, é difícil conceber que há outros para além de si mesmos.”
Sampa do agosto de vinte dois me desgostava. Noites de ruas desertas, o perigo em cada esquina. Rumei a outros lugares. No brincar com o Manuel, criança bailarina, recuperei energia, para continuar viagem. Na expectativa da chegada do Miguel, o pai Cristiano, calorosamente, me acolheu no seu lar. Calorosamente, porque, para além do calor humano, em sentido literal me obrigou a vestir roupa de inverno, protegendo este velhinho do frio da noite do ABC.
Nos saborosos dias passados em Santo André, encontrei alívio das tensões. Em lenitivas conversas com o Paulo refiz a confiança na humanidade. Desse ser humano extraordinário vos falarei mais adiante.
Por: José Pacheco
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