Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXI)

Petrópolis, 30 de agosto de 2042 

Num agosto dos idos de vinte, a minha amiga Cecília convidou-me para com ela aprender a cuidar de crianças petropolitanas. Aceitei e fui partilhar o quotidiano de uma secretaria que recuperava ânimo, após uma tragédia anunciada, que causara mais de cem mortos, entre os quais muitas crianças. 

A Cecília participava ativamente na reparação de estragos e na reparação da dor causada pela perda de vidas humanas. O desmatamento e o assoreamento fizeram com que as águas pluviais, represadas em frágeis encostas, virassem torrentes, provocassem o caos. Seria necessário prevenir, para não voltar a lamentar. Seria necessário solidarizar, educar em comunidade.

Nós já sabíamos que a educação de uma criança começava vinte anos antes de ela nascer. Também já nos habituáramos à lengalenga da “crise das instituições”. Era bem verdade que a Família já não é o que era, que a Escola se achava num estado de decomposição acelerada, que a moral vigente era caduca e que assentava numa trágica inversão de valores. Era bem conhecida a arenga escolar do “já não é como antigamente, já não há respeito”. 

As famílias argumentavam que a culpa era da perda de autoridade dos professores. A culpa morria solteira e as crianças sobreviviam entre dois fogos, numa guerra de trincheiras: de um lado, pais “modernos”; do outro, professores que se demitiam de o ser. Iríamos passar o resto das nossas vidas a carpir desgostos, ou tentando extirpar a infelicidade em todos os lugares onde ela se acoitava?

Quando o vosso avô se iniciou nas lides de ensinar e aprender, as crianças entravam na escola silenciosas, tolhidas do medo resultante de uma educação autoritária, até mesmo violenta. No tempo em que o vosso pai se iniciou na arte de ser professor, as crianças chegavam à escola gritando como possessos, por serem frutos de ambientes de ruído. 

Não se pense que o sarro da velha escola fora eliminado da prática pedagógica. Em pleno agosto de vinte e dois, tive conhecimento de um triste episódio. A diretora proibira os alunos de ir ao banheiro/quarto de banho, durante as aulas. Uma aluna pediu, suplicou, chorou, mas a professora não autorizou, porque a diretora não admitia desobediência às regras do regimento escolar. A aluna acabou por não conter a urina. A humilhação suspendeu a aplicação do regimento.

Para o médico, o problema não é o doente mas a doença. O mesmo se aplicaria ao professor: o problema não é o aluno. Se um aluno denotava desajuste e comportamentos “disruptivos”, ou o aluno estava doente, ou estava doente a escola. Ambos padeciam de uma enfermidade que urgia diagnosticar e sanar. E isso não se conseguiria fazer com recurso a proibições e sanções. Uma ferida profunda e gangrenada não seria curada com pensos rápidos.

O que poderia explicar que uma escola só se apercebesse de que uma criança encontrada morta na rua era aluno seu, apenas quando comparou a fotografia do morto com a da caderneta do professor? Porquê essa desumana e trágica impessoalidade? 

A degradação do sistema de relações indiciava insegurança e medo, um “medo que salvava da loucura”, como diria o O’Neill. 

O medo que o “salvava” da loucura conferia ao professor o direito de expulsar alunos. Era da mesma natureza do medo que impelia alunos à indisciplina. E era da mesma natureza da infelicidade do professor.

Perante adversidades, esmagados pelas agruras de um difícil quotidiano, muitos professores desperdiçavam o seu precioso tempo na organização de turmas, na fabricação de horários, em reuniões de planejamento e outros inúteis rituais de início de ano letivo.

Por: José Pacheco

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