Búzios 19 de setembro de 2042
Adotando na prática o preceito montessoriano “Segue a Criança”, seguia o olhar da infância e partilhava com amigos reflexões decorrentes desse olhar.
Em tempos idos, este avô aprendente seguia a direção do vosso olhar, para rever a paisagem onde se embrenhou, vezes sem conta. Foi no subir e descer aqueles montes que aprendi uma lição. Acreditamos que, atingido o cume de uma montanha, teríamos atingido o limite do horizonte. Chegados ao cimo, nos apercebíamos de que o caminho se estendia para o fundo do vale. Atravessado o vale, novo caminho se apresentava, monte acima, até ao ponto em que seria preciso descer, para voltar a subir. E, depois, descer e subir e descer e subir…
Mais tarde, na Terra do Brincar, a janela do escritório era um ícone, através do qual um olho treinado no olhar de criança perscrutava o verde da vegetação, penetrava o verde-azul das águas, sondava o azul do infinito.
Um olhar desatento submeter-se-ia a ilusões de ótica, veria no horizonte uma restinga arborizada, a ondulação na lagoa, o voo em vê dos biguás. Mas, sobrevoando a vastidão de pormenores que a paisagem encerrava, eu detectava sucessivos recortes antes ocultos a uma visão bidimensional estrábica.
“O segredo do seu olhar” é nome de filme, de um filme que me tocou profundamente. E que invoco, quando vêm à memória imagens de um mundo incomunicável, não suscetível de ser entendido ou percebido, de um mundo interior só captável pelo olhar para dentro, que dá expressão à nossa identidade e singulariza o nosso destino.
À medida que vamos tomando consciência desse mundo interior, vamos aperfeiçoando a focagem do olhar para fora, sem perder o segredo do saber olhar de uma criança grande.
Mão amiga me fez chegar um manuscrito religiosamente guardado no meu baú de velharias, a narrativa de uma mãe atenta a infantis descobertas, uma mãe que sabia olhar. Peço perdão à autora por não o mencionar, pois a humidade apagou parte do texto:
“Vi Yerê ficar em pé. Mas era como se ele não tivesse percebido a façanha, ele continuava em plena concentração, não comemorava a vitória. Depois, se acocorou com harmonia e cavou com a mãozinha direita uns punhados de areia. Dessa vez, não levou para boca. Com esses nadinhas de areia, olhava atento a sua mão.
Estava em pé o meu filho! Em equilíbrio tranquilo, sem esforço. E eu a ver o milagre.
Abriu a mão e dos dedinhos e iam caindo bolinhas de areia molhadas do mar. Soltou uma gargalhada. A gargalhada se quebrava no ar a lhe balançar o corpo, sem parar, a ver areia a cair.
Yerê se equilibrou em pé a primeira vez em sua vida, para experimentar. O corpo que deixava o chão, a areia que voltava ao chão, Yerê descobrindo a força da Terra, descobriu-se assim, sem pensar, em pé.”
Olhares virginais denotam consciência de ocultas realidades, projeções só possíveis por um olhar para dentro, por dentro. Aprendendo a interrogar “realidades”, chegamos à compreensão daquilo que nos é permitido ver fora de nós, além de nós, e que nos pode isentar da “pinoquização cultural” e nos pode levar por utópicos caminhos.
Utopia não era sinônimo de impossibilidade. Utópico seria algo que indicasse uma direção a novos olhares. Nos idos de vinte e dois, num tempo em que se presumia neutralidade de “pontos de vista”, num tenebroso tempo do medo e da mentira, não nos deixávamos guiar por alheios e condicionados olhares. Pressentíamos o intangível. E, como diria Quintana, “se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não as querer”.
Concretizando utopias, recriando vínculos, reolhando, concretizávamos um “inédito” viável.
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