São José, 5 de outubro de 2042
Disse-vos que iria fazer perguntas e vós perguntastes se teríeis de responder. Sossegai. Não é isso que eu pretendo. Não se trata de um interrogatório. E mesmo que eu estivesse a agir como quando era tutor, quando perguntava algo aos aprendizes que estavam ao meu cuidado, não esperava resposta imediata. Elaborávamos roteiros de estudo. Juntos, procurávamos “respostas”.
Então, aqui vos trago mais uma pergunta daquelas que eu fazia, há trinta, quarenta, cinquenta anos. E a que ninguém sabia dar resposta.
Se numa aula pouco, ou mesmo nada se aprendia, por que razão os professores davam aula?
Cheguei àquela instituição de formação de professores a convite da sua diretoria. Levava vinte anos de Escola da Ponte para partilhar com os colegas da academia. Escutara as suas palestras, frequentara os seus cursos.
Era elevada a expectativa, esperava ver a aplicação das propostas escolanovistas, que eles divulgavam em teses e que eu lera sofregamente. Esperava aprender.
À chegada, entregaram-me umas listas de alunos e me disseram que iria “dar aula na sala X”. Disse-lhes que deixara de trabalhar em sala de aula, há mais de vinte anos, depois de ter lido os pedagogos que eles tinham como referência. E que não haveria turmas – trabalharia no um-para-um com “sujeitos de aprendizagem, não como objetos de ensinagem.
A minha interlocutora informou que “todos os professores cumpriam as regras da instituição” (sic).
“E por que essas as regras?” – questionei. E ela insistiu:
“Colega, para você trabalhar aqui, terá de aceitar as nossas regras”.
Seguiu-se um diálogo de surdos:
“Aqui, é assim. Todos os nossos docentes dão aula. Em sala de aula!”
“Porquê?”
“Por que o quê?”
“Por que dão aula?”
Respirou fundo, não respondeu e pôs nas minhas mãos aquilo a que chamou “folhas de registo de presença”. Voltamos ao não-diálogo:
“O que é isto?”
“Não diga que não sabe, colega! É para os alunos assinarem. Terá de passar as folhas no início e no final da aula.”
“Não farei isso. Li a vossa proposta pedagógica. Nela está escrito que quereis formar professor autónomos, responsáveis. Isso não se consegue controlando, duvidando da honestidade dos alunos.”
“É preciso verificar se eles não ultrapassam a percentagem de faltas. É sua obrigação.”
“E por que terei de cumprir essa “obrigação”?”
Ignorou a pergunta.
“O colega sabe onde está o livro dos sumários das aulas?”
“Não sei, nem pretendo saber. A colega saberá dizer-me por que terei de dar aula?”
Não respondeu. Deu meia-volta e dali se foi resmungando.
Uma vida de professor de escola pública me mostrou que fiz a escolha certa, ainda que tivesse de passar por três crises. Da primeira já vos falei, se não me falha a memória. Creio que vos disse que só sabia “dar aula”, quando ingressei na “carreira”. E que me interrogava:
“Se eu dou aula tão bem dada, por que há alunos que não aprendem?”
Era evidente a resposta: se eu dava aula e eles não aprendiam, eles não aprendiam porque eu… “dava aula”.
Nos idos de vinte, um “alto responsável da educação” criticava o fato de as crianças passarem mais de cinco horas diárias em sala de aula:
“Não é recomendável, manter os alunos na sala de aula cinco horas ou mais. A escola a tempo inteiro, até às 17.30, deveria ser revista. As escolas não podem ser lugares onde se toma conta de meninos e meninas.
Defendo uma carga horária do 1.º ciclo igual à do 2.º ciclo e aulas a acabar na mesma altura, no final do 3.º período.”
Por que haveria “calendário escolar”, “ano letivo”, “ciclo”, “carga horaria, “terceiro período”, “sala de aula”?
Ninguém sabia. “Pero que las havia las havia…”
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