Morro Grande, 23 de outubro de 2042
Creio que vos terei falado de um professor que se gabava de, no tempo em que dava aula, ser considerado um “bom professor”, pelo facto de reprovar muitos alunos. Ignorava que quem reprovava era ele, pois não sabia avaliar – confundia avaliação com aplicação de prova, e classificação com “dar nota”.
No fundo do baú das velharias, encontrei um textinho com o título: “A escola de antigamente nunca foi de boa qualidade”. Me recordo de ter sido útil a sua leitura, porque me auxiliou no decurso de uma palestra, quando um professáurio soltou o seguinte comentário:
“Isso que você diz de não haver aula é muito bonito, mas antigamente é que se aprendia. Na terceira série, eu já sabia mais conteúdo do que a minha filha, que já está no nono ano.”
Perguntei:
“O colega fez o Fundamental completo?”
A resposta foi uma risada coletiva.
Insisti, perguntando ao mais de um milhar de professores ali presentes se tinham aprendido todos os conteúdos do Fundamental.
“Claro! É evidente!” – responderam em coro.
Completei a inquirição, questionando:
“Quem sabe fazer raiz quadrada?”
Um perturbador silêncio se seguiu à inusitada pergunta. Poucos professores ergueram o braço. Deveriam ser matemáticos ou engenheiros, na situação de professores.
Formulei outras perguntas sobre conteúdos de História, Ciências e outras disciplinas do Ensino Fundamental.
Ninguém soube responder.
Voltei a questionar:
“Então, aprenderam, ou não aprenderam conteúdos, na sala de aula?”
Ao longo de mais de cinquenta anos, em “palestras”, perguntei a milhares de professores:
“Durante a vossa vida, quantas vezes precisaram de utilizar raíz quadrada?”
Nunca alguém disse ter precisado…
Por muito que custasse admitir, na sala de aula, apenas se copiava informação, se exercitava a memória de curto prazo e praticava decoreba. Vomitada a raiz quadrada numa prova, a memória esperta a esquecia.
Nos idos de vinte, alheias aos trágicos efeitos das suas práticas, a escola da sala de aula ia entupindo a memória dos alunos com informações, que eles não relacionavam com o mundo real. Os professores preparavam projetos para os alunos, quando deveriam construir projetos com os alunos. Despendiam significativa parte do seu tempo a fazer planejamentos de aulas, sedimentando processos de heteronomia, quando deveriam ensinar os alunos a planejar as suas vidas, a desenvolver senso crítico e autonomia intelectual.
Há muitos anos, o Mestre Agostinho da Silva nos recordava que “a maior parte dos professores que combatem métodos novos fazem-no porque os desconhecem, ou porque todos à volta se conservam na rotina (num) próspero analfabetismo em que uma boa parte não sabe ler e outra boa parte não entende o que lê.”
A maioria dos professores das escolas “normais” acreditava que ensinava dando aula e aplicando prova, quando apenas reproduzia acumulação cognitiva. Se tivessem contraído o hábito de “ler o mundo”, esses professores perceberiam quanta perversidade existia na indústria dos cursinhos. Neles, os jovens engoliam apostilas e novos “reativans”, e eram sujeitos a um sem-fim de provas, que pouco ou nada provavam.
No vestibular (ENEM, PGA…) o jovem estressado alienava-se do mundo, para se concentrar no objetivo maior: entrar numa faculdade. Se, decorridos alguns anos, esse jovem e os seus professores fizessem o mesmo vestibular, provavelmente, não conseguiriam ser aprovados nesse exame – já teriam esquecido os conteúdos da decoreba.
Quantos “bons alunos”, aprovados no vestibular de há vinte anos, saberão calcular, hoje, uma… raiz quadrada?
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