Cachoeira do Espraiado, 31 de outubro de 2042
Por altura do centenário do Darcy, eu estava decidido a suspender este exercício epistolar. Após publicar a milésima carta, vos falei sobre isso, mas me pedistes que eu continuasse a escrevê-las, pelo menos até maio do próximo ano. Aquiesci, embora já me falte a vista e não saiba se chegarei ao maio em que farei os noventa e dois. Vamo que vamo…
Sobra outro motivo de continuidade, a vontade que sinto de vos falar do que sucedeu após as eleições de vinte e dois. Porque, se nesse an, o Darcy completava cem anos, a escola produtora de bonsais autoritários já passara dos duzentos.
A educação prussiana causara muita destruição, miséria, ignorância, já formatara muitos fanáticos fundamentalistas. Essa escola era uma centenária mentira a juntar a outras mentiras. Foi nesse tempo que começou a tomar forma um grupo de educadores decididos a aproveitar tempos de nova política, para criar uma nova construção social, que viria a substituir aquela que a prineira revolução industrial engendrara.
A minha amiga Tina fazia parte desse grupo de educadores, e isto escreveu num artigo publicado em finais de outubro de vinte e dois:
“Quando falo de projeto, o que mais escuto é: Isso é muito inovador, mas nós ainda não estamos preparados para uma educação tão futurista.
Futurista? Em 1918, William Kilpatrick, discípulo e parceiro de John Dewey, publicou o primeiro artigo sobre a metodologia de trabalho de projeto, em projetos baseados em problemas reais. de interesse do aluno.
Com mais de cem anos, poder-se-á chamar esse “método” de futurista?
O que vejo é a tentativa de maquiar a velha aula, mantendo o professor como o detentor do saber e aparentemente invertendo sua estrutura; Camuflar a insistência na memorização de conteúdos fragmentados, usando muitas vezes jogos repetitivos; Manter a ausência da autonomia dos professores e matar a curiosidade dos alunos, forçando um sequenciamento de uma apostila.
É insano, e me atrevo a dizer que é desonesto perpetuar nosso modelo educacional. Além de não ter embasamento na ciência, nosso atual sistema educacional está fora da lei.”
Tão indignada quanto Darcy, a Tina denunciava a hipocrisia reinante:
“A transformação principia na tomada de consciência da necessidade de se fazer diferente e acreditar que é possível. Muitos querem mudança, mas poucos querem se dedicar a sair da zona de conforto e a repensar suas práticas.
Incontáveis empresas investem em criar manuais, fórmulas, roteiros, aplicativos, jogos e dispositivos, para supostamente melhorar a educação, sem que o professor precise pensar e se esforçar. Vendem ilusões, pois perpetuam um sistema instrucionista e conteudista, onde adestram crianças e jovens a passar em testes.”
A Tina colocava em prática o legado de Darcy Ribeiro.
Nunca será demais falar-vos do Darcy. Numa vida de muitas vidas, Darcy Ribeiro foi um renascentista. Tal como um Galileu, que fabricava as lentes com que observava os astros, Darcy concretizava sonhos. Foi antropólogo, sociólogo, educador, indigenista, escritor, político. Publicou textos antológicos. Dedicou-se ao estudo de comunidades indígenas do Pantanal e da Amazônia. Acompanhou Rondon no Serviço de Proteção aos Índios. Fundou o Museu do Índio e ajudou a criar o Parque Indígena do Xingu. Com Anísio, pugnava por uma Educação de todos para todos, independentemente da sua condição financeira ou credo.
Darcy mostrou caminhos e nos deixou a incumbência de os cumprir. Nos idos de vinte, era preciso ir além da “conversa fiada” sobre Darcy. Urgia praticá-lo.
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