Barra de Maricá, 1 de novembro de 2042
Se lêsseis as notícias de jornal, que guardo no meu baú das velharias, poderíeis pensar que tais notícias seriam caraterísticas de tempos críticos de países “em vias de desenvolvimento”, como na altura se costumava dizer. Nada disso, trata-se de relatos de incivilidade latente em lugares onde as novas gerações europeias eram “instruídos”.
Episódios pautados em violência psicológica e física, atos de estrema crueldade e até mesmo de sadismo explícito se desenrolavam dentro e fora de prédios a que chamavam escola. Com esses relatos, arrisco-me a fazer desta cartinha um exercício de feiura, mas não quero pecar por omissão.
Em muitas escolas do Portugal de há vinte anos, onde deveria pontificar o cuidado consigo e com o outro, reinava o abandono intelectual e moral. Meditai sobre estes exemplos de desumanidade.
“Aluna agride funcionária de escola básica. Vítima teve de ser transportada para o hospital, devido aos ferimentos sofridos.”
“Mãe de aluna agride coordenadora de ensino, dentro da escola.”
Em outra escola, uma aluna de dezesseis anos denunciava uma violação “Ele obrigou-me a fazer sexo oral”.
Em outro campo de batalha escolar, uma jovem era agredida por uma colega, com bofetadas, empurrões, socos no baixo-ventre, enquanto um grupo de estudantes filmava a cena e incitava a agressora a maiores violências.
A agressora e a vítima, ambas com catorze anos, frequentam o oitavo e o nono ano. A aluna que agrediu a colega já tinha sido suspensa da escola, no âmbito de um processo disciplinar desencadeado por agressões à mesma jovem”.
Comunicado do diretor do Agrupamento:
“Foi aberto um processo disciplinar à aluna agressora e ao rapaz que fez as filmagens. Foram ainda identificados todos os alunos que presenciaram as agressões e não fizeram nada para as impedir, para avaliar se serão também sancionados a nível disciplinar.
A aluna agressora continua a frequentar a escola, até que seja tomada uma decisão sobre a sua suspensão, que pode ir dos cinco aos dez dias.”
A aluna agredida foi apoiada pelo gabinete de psicologia da escola. A família da vítima fez queixa ao Ministério Público. A escola reportou a situação à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e “reforçou os conteúdos da disciplina de Cidadania, com especial incidência nos direitos e deveres e na resolução de conflitos. (Sic)”. Pilatos faria o mesmo.
Processos disciplinares, suspensões, “aulas de cidadania”, o apogeu da escola prussiana, num cenário de filme de terror.
Não penseis que essa situação se perpetuou. Os sórdidos atos, que relatei nesta cartinha, inimagináveis neste ano de quarenta e dois, foram rareando. Porque, nos idos de vinte, paralelamente à barbárie instituída, havia escolas onde alunos e professores dispensavam maquiavélicos “processos disciplinares” e inúteis “aulas de cidadania”.
Quando fui eleito para o Conselho Nacional de Educação, esperava-me a difícil missão de redigir um Parecer sobre uma proposta de lei de “reorganização curricular”. Da proposta constava a introdução de duas aulas de “educação para a cidadania”.
Escrevi no Parecer que as escolas não deveriam “preparar para a cidadania”, mas educar no exercício da cidadania, pelo que deveria considerar-se a necessidade de rever processos de gestão e erradicar lideranças tóxicas.
E deixei uma pergunta, até hoje sem resposta. Os alunos só agiriam como cidadãos duas vezes por semana, nas ditas “aulas de cidadania”? Nas aulas de matemática, não seriam cidadãos? E os intervalos entre aulas não deveriam ser espaços de cidadania?
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