Inoã, 2 de novembro de 2042
Queridos netos, dissestes terdes ficado surpreendidos, “chocados”, com a fealdade da cartinha de ontem. Sois pessoas sensíveis e acreditais no que o vosso avô vos narra, na veracidade das descrições de atos de violência. Pois ficai sabendo que outras violências eram perpetradas, essas bem mais difíceis de identificar.
O abandono intelectual, traduzido em índices de decoreba do ensino básico – vulgarmente conhecido por IDEB – era um deles. Milhões de seres humanos viam negado o constitucional direito à educação. A Escola vivia imersa numa crise moral, cuja origem escapava à compreensão de comuns mortais, mas que os cientistas da educação, há muito, haviam identificado.
Nos idos de vinte, a comunicação social apenas desocultava um cortejo de horrores, situações de violência explícita. Como esta:
“Gangue viola meninas à saída de uma escola e regista momento. Detidos, de 17 e 16 anos, e dois outros, de 15, atacaram seis crianças, dos 12 aos 15 anos. Uma menina foi arrastada para um quarto, onde já estavam mais dois membros do gangue juvenil. Foi agarrada por dois deles e violada pelo terceiro até ficar num estado de semiconsciência, só conseguindo recordar os risos dos criminosos.”
Onde e com quem teriam esses jovens aprendido a agredir, violentar? Não seriam suficientes os sinais de alerta, evidências da obsolescência de um modelo educacional moral e intelectualmente corrupto?
Por altura de uma eleição, discutia-se quem deveria ser o ministro da educação do novo governo. Era importante a escolha de um ministro. Tivéramos ministros titulares de todos os cursos que na universidade havia – Medicina, Direito, Física, Teologia etc. – e até ministros pastores terraplanistas! Cadê os cientistas da educação?
Mais importante seria criar condições de reconstrução de uma Escola Pública colonizada e mercantilizada. Necessário seria praticar a escola cidadã do Anísio e do Darcy, para que não mais voltassem tempos sombrios.
Encerro esta cartinha com a invocação de um “incidente crítico”.
Estava o vosso avô conversando com educadores, quando irrompeu no auditório um grupo de aparentes “jagunços”. Fez-se silêncio no auditório. Os professores sentados na primeira fila a desocuparam e o grupo invasor ali se instalou. Soube, depois, que se tratava do secretário de educação, acompanhado de alguns vereadores.
Retomei a fala, do modo habitual: “O que quereis saber?”
Os da primeira fila olharam para as de trás. Os professores se quedaram mudos e quedos. E um pesado silêncio atravessou o auditório. Até que algumas criaturas sentadas na primeira fila gargalharam e me incentivaram com xingamentos que, por pudor, não reproduzirei.
Levantou-se um burgesso e se apresentou como secretário de educação. Dirigiu-me palavras intimidatórias, disse que eu deveria ir embora e que os “seus professores” não precisavam de mim.
“Sei muito mais das coisas da educação do que o senhor! Ouviu?”
“Ouvi.”
“Então, ponha-se daqui para fora!”
“Irei, mas quando eu quiser. Quando “os seus” professores quiserem.”
Ignorei gestos ameaçadores e emendei a frase…
“O senhor fez algum curso que o habilite a falar de educação?”
O secretário mandou sentar dois energúmenos, que se preparavam para subir ao palco. Sarcasticamente sorrindo, isto disse:
“Fique sabendo que sou médico! Tenho uma clínica!”
Aparentando uma calma, que já não sentia, retorqui:
“Deixe ver se entendi. Se um médico pode “dar palpite” sobre as coisas da educação, eu poderei ir à sua clínica e fazer operações cirúrgicas?”
Talvez um dia vos conte o resto da estória.
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