Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLIII)

São José da Boa Morte, 3 de novembro de 2042

Creio que chegou a hora de vos contar outras estórias. Aquelas que o tempo não apagou na caótica memória de um velho professor de Escola Pública. Quase setenta anos após a chegada do vosso avô à escola celebrada pelo amigo Rubem, eis-me a tirar o pó a velhos calhamaços. Neles moram memórias de vidas vividas numa espécie de mutação genética do sistema educativo. 

Quando a maior parte dos protagonistas desta e de outras estórias já habita e seu lugar etéreo, antes que eu, também, para lá vá, me apressarei a vo-las contar.

 Comecemos pela… Ponte. Dois dísticos ficaram por longo tempo nas paredes dessa escola. Um deles com uma bem conhecida frase da Clarice Lispector: 

Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade.” 

O outro era a exata representação dessa escola:

“É a natureza do trabalho escolar que deve determinar a estrutura dos edifícios. A nossa escola será uma “oficina de trabalho” integrada na vida do meio. Este destino específico necessita de uma estrutura nova”. 

“Uma estrutura nova!” A frase de Freinet induzia-nos na primeira formulação do conceito “escola”: escolas são pessoas. E nos conferiu ânimo, a freiriana coragem, que juntamos ao amor que sentíamos pelas crianças.  Para que compreendais bem melhor do que isso significa, o valor da coerência, do exemplo, um dia, vos falarei do Freinet combatente da primeira e da segunda guerra mundial. 

A coragem de Freinet, expressa na inovação que produziu e como combatente contra o fascismo, esteve na origem da frase-emblema, que nos acompanhou nos primeiros tempos do projeto. Ei-la:

“Precisamos mais de interrogações do que de certezas.”

Fui um entre muitos, mas fui o primeiro a “Fazer a Ponte”. Proibido pela direção da escola, ameaçado pela administração educacional, procurei parceria nas famílias dos meus alunos. Anos depois, com a chegada da Maria Luísa e da Maria José, uma equipe se juntou ao início de uma comunidade. Disso mesmo se tratou, desde o primeiro instante – de uma comunidade – ainda que circunscrita a um bairro: o Lugar da Ponte.

No fundo do baú das velharias, achei uns papelinhos contendo escritos de professores pontistas do início dos anos oitenta. Vos dou a ler alguns excertos.

“O desencanto, que começava a fazer-se sentir, atenuou-se. Por vezes, o nosso destino parece uma árvore de fruto no inverno. Ninguém diria que aqueles ramos hão-de ficar verdes e florir de novo, mas nós temos confiança, nós sabemo-lo (…) mas, juntos, podemos refletir melhor e com mais profundidade. É preciso não estar sozinho.

A maior parte de nós trabalhava sozinha, há já muitos anos, e muitos vícios se foram adquirindo (…) antigamente, um dos motivos da minha grande insegurança era ter de fazer o trabalho sozinha; se tivesse mais alguém com quem pudesse programar, fazer fichas e verificações, estas minhas dúvidas e incertezas seriam bem menores.

Antigamente, vivíamos mais sós as nossas frustrações. Agora, as despejámos em grupo e sentimos apoio daqui e de acolá.”

Numa mistura de romantismo e conspiração, esses depoimentos prenunciavam, de algum modo, o surgimento, um quarto de século depois, dos chamados “Românticos Conspiradores”.

Foi um desses RC quem redigiu este textinho:

“Os professores não se formam sozinhos, formam-se em contextos específicos, com os instrumentos e meios de que dispõem. É no conjunto que o objeto ganha inteligibilidade, na formulação de um espaço de relações objetivas.”

Na cartinha de amanhã, espero poder falar-vos dos primeiros tempos do “Fazer a Ponte”.

Então, até amanhã!

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