Barracão dos Mendes, 23 de dezembro de 2042
Naquele tempo, havia quem tivesse medo de que o medo acabasse, que se extinguisse o medo de ser, o medo que fazia desaprender.
Também, havia quem seguisse o preceito de Mia Couto: que a nossa indignação seja maior do que o medo.
Aliei-me a educadores sem medo, que me pediram ajuda para fazer uma escola diferente de outras escolas. Na última semana do ano da graça de vinte e dois, entre Natal e Ano Novo, não faltou coragem para encarar temores e ignorâncias. Um círculo de aprendizagem se constituiu junto à lagoa, que viria a transmutar-se em ágora congregadora. Quando preparava essa “semana experimental”, a memória me transportou para um tempo em que o medo provocava abdicação. E a reflexão sobre fracassos me ajudou a preveni-los.
Foi numa Brasília sitiada, que tudo ocorreu em dois tempos. No primeiro, uma tomada de decisão sem medo e o defrontar de obstáculos. Decorridos quatro anos, eis que o medo volta a dissipar-se e o projeto se concretiza.
Entre 2016 e 2018, gastamos muita energia, muita paciência, muito dinheiro, a tentar contornar empecilhos inventados pela administração educacional. Dou-vos um exemplo.
A equipe de projeto encontrou um edifício que, depois de adaptado, poderia vir a ser a sua ágora. A expensas suas a equipe de projeto contratou um engenheiro. Uma arquiteta amiga fez o projeto de adaptação do edifício. E, para além de colaborarmos no projeto, gratuitamente, ainda pagamos o trabalho de um estagiário.
A administração escolar nunca perguntou que despesas fizemos. E informaram que os engenheiros responsáveis pelas construções escolares tinham vetado a utilização do prédio, porque não tinha… salas de aula (mal sabiam que também não teria “sala de professores”, nem instalações sanitárias para professores separadas das dos alunos).
“Como é que pode não ter sala de aula?” – questionaram os engenheiros.
“Por que deverá ter?” – perguntei. E expliquei aos engenheiros, de modo que um engenheiro leigo no domínio das ciências da educação entendesse, que sala de aula era coisa do século XIX. Se houvesse um prédio, tanto melhor, poderíamos abrigar-nos das intempéries. Mas não seria indispensável que houvesse um edifício a que chamassem escola.
Insensíveis, tentando disfarçar tiques autoritários, disseram não entender o que estavam a ouvir, lamentaram-se das canseiras, que lhes consumiam as horas e lhes desgastavam os nervos.
Foi-lhes dito que as novas práticas reduziriam a carga burocrática, origem dos seus queixumes. Reagiram com agressividade:
“Era só o que faltava! O que você está a dizer é um absurdo! Onde já se viu? Uma escola tem de ter salas de aula. Sempre foi assim! E os professores têm de fazer o registo diário das aulas que derem e os sumários da matéria ensinada.”
“Não faremos tais registros, porque não daremos aula.”
“O que quer dizer com isso?”
“Isso mesmo.”
Sem saber o que responder, como argumentar, em tom de ameaça, advertiram:
“Do nosso ponto de vista, tem de ser como nós achamos que deva ser.”
“Prezados, somos formados em ciências da educação. Vós sois engenheiros e arquitetos. Eu nunca daria sequer opinião sobre engenharia ou arquitetura escolar. Então, peço que não se atrevam a “achar”. Somos da educação e entre nós não existe “achismos”, nem “pontos de vista” sobre educação.
Ao cabo de muitas reuniões, conseguimos contornar esse e outros obstáculos. Os “achistas’ cederam. Ficamos amigos e… sem salas de aula.
Esse desfecho feliz talvez tivesse sido o primeiro sinal de que a pedagogia começava a ocupar espaços antes ocupados pela burocracia.
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