São José d’Imbassaí, 29 de dezembro de 2042
Em “A face oculta da escola”, Enguita assim descrevia uma absurda situação:
“A sucessão de períodos muito breves – sempre de menos de uma hora – dedicados a matérias muito diferentes entre si, sem necessidade de sequência lógica entre elas, sem atender à melhor ou à pior adequação de seu conteúdo a períodos mais longos ou mais curtos e sem prestar nenhuma atenção à cadência do interesse e do trabalho dos estudantes; em suma, a organização habitual do horário escolar ensina ao estudante que o importante não é a qualidade precisa de seu trabalho, a que o dedica, mas sua duração.
A escola é o primeiro cenário em que a criança e o jovem presenciam, aceitam e sofrem a redução de seu trabalho a trabalho abstrato.”
A tradicional organização do tempo escolar raramente levava em consideração realidades sociais, os ritmos e sazonalidades comunitárias. Acresce que, sendo os educadores as pessoas mais indicadas para a organização do tempo escolar, nos idos de vinte, quase sempre, essa tarefa era entregue a gestores e especialistas de áreas alheias às ciências da educação, que repartiam o tempo em fatias, compartimentando, hierarquizando, instituindo “grades curriculares”, fixando o tempo concedido ao ensino de cada disciplina, tudo previsto, tudo inerte.
Pela administração escolar eram apresentados pseudoargumentos. Por exemplo, que seria impossível criar as comunidades de aprendizagem a meio de um ano letivo e que não havia edifícios onde funcionassem. Foi respondido que as comunidades de aprendizagem não carecem de edifícios para as albergar. Não faltam instalações, espaços de aprendizagem: centros culturais, a natureza, a praça, a igreja, a casa, a Internet…
Foi explicado que numa comunidade de aprendizagem não há ano letivo, semestre, trimestre, bimestre, nem um determinado número de dias letivos, porque se aprende nas vinte e quatro horas de cada dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano civil. Que os jovens não entram nem saem da “escola” no mesmo horário. Que não há salas de aula, divisão em turmas, ano de escolaridade. Que não há toques de campainha, que os jovens não têm de fazer xixi ou se alimentar em intervalos, porque não há intervalos (melhor dizendo, cada pessoa vai ao banheiro ou ao refeitório, quando precisa).
Quando decidimos criar a primeira comunidade de aprendizagem, não havia obrigação de apresentar provas da legalidade dessa nova construção social. Quem teria de provar não ser possível a mudança seriam aqueles que usavam as leis a seu bel prazer e impunham às escolas uma situação de ilegalidade.
Quando nos perguntaram pelo “projeto”, respondemos que o projeto era o da escola, um documento que os professores não liam e que, na prática, contrariavam.
Ninguém poderia alegar desconhecer a lei (e o projeto era lei) e a anómala e generalizada situação poderia mesmo configurar falsidade ideológica.
Pela enésima vez nos disseram que não poderiam criar uma escola a meio de um ano letivo. Pela enésima vez, perguntamos: O que impede?
Recusando dialogar, os “superiores” acreditavam ter impedido a realização do projeto. Engano ledo e cego, porque não carecíamos de autorização “superior”. Embora alguns professores tivessem recuado, talvez com medo de perder o emprego, educadores éticos mantiveram-se leais ao projeto, que recomeçou, mais forte do que antes, suportado na lei, fundamentado numa ciência prudente e numa digna desobediência.
No dezembro de há vinte anos, nasceu o primeiro círculo de aprendizagem. Fora de tempo? Fora do tempo? Sem tempo?
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