Maricá, 31 de dezembro de 2042
Netos queridos, no início deste século, o vosso avô fez um livrinho com o título “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”, que a Janaína transformou numa bela peça de teatro. Decidi escrever esse livrinho numa noite de passagem de ano, quando tu, querido Marcos, sentado no colo do teu pai, viravas páginas de livros, como quem lia. Deste modo descrevi a tua “leitura”:
“Melhor dizendo, o Marcos lia. E balbuciava uns sons só aparentemente desconexos. Eu, que estou longe de ser um entendido na palavra pura, que ainda confundo uma arenga babélica com a fala transparente, não conseguia traduzir o seu balbuciar. Este avô, ainda que empenhado no desaprender do palavrear adulto, deturpa o verbo virginal, confundindo-o com o linguarejar de adultos tagarelas.”
Na noite de “Ano Novo”, a casa estava cheia de gente e de altos sons. Lá fora, o termómetro marcava zero graus. Dentro de casa, o calor humano juntava-se ao calor provindo da lareira, na espera dos últimos dez segundos do ano. A tradição mandava que, em cada momento da contagem decrescente, os adultos comessem uma uva passa, formulando desejos, e objetivos para o ano seguinte.
“Subitamente, o meu neto suspendeu a leitura e fixou o olhar num ponto qualquer, como quem deparara com o Aleph. Fiquei a observá-lo, discretamente, para não interromper a absorvente contemplação. Segui a direção do seu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um tio que engolia uvas passas com um semblante demasiado concentrado para quem apenas estava ingerindo alimento.”
Quando os adultos ingeriram a primeira uva passa, fez-se um súbito silêncio. E, não te recordarás, certamente, mas te sobressaltaste. Suspendeste a leitura e passaste à contemplação da cena. Vendo aquele ritual pela primeira vez, com olhos de inícios.
Não suspeitavas, querido Marcos, que estavas sendo sujeito a aculturação, ao contemplar um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros que desejara não cometer no último dos dias do ano anterior.
Aqueles adultos eram mesmo assim. Viviam viciados no futuro, adiando futuros, submissos ao ritmo de relógios e calendários. Subviviam.
Viver seria compadecer-se da angústia dos que ainda acreditavam que é o tempo que passa. Muita infelicidade humana findaria. quando se desfizesse o mito da existência de um tempo medido, segmentado.
Nada acabava, quando acabava um ano. Quando um ramo secava, novo ramo germinava, quando uma certeza tombava na arca das inutilidades, novas doutrinas, tão perecíveis como as perecidas, se esboçavam, no rendilhado tecer das efémeras ciências.
Era durável somente o que fazia sentido que se renovasse em cada um dos nossos transitórios dias. Do mesmo modo, nenhum modelo educativo seria perene. E, nos idos de vinte, dava por mim, formulando as mesmas perguntas de há vinte ou trinta anos.
Por que se continuava a desperdiçar precioso tempo, transmitindo aos alunos o que constava de livros que poderiam ser lidos sem intermediário, num tempo próprio, que diferia do ritmo de leitura, dos tempos próprios de outros leitores?
Seria esse desperdiçado tempo o mesmo tempo idolatrado, em cada início de “ano civil”, e cronicamente reconhecido insuficiente para dar todo o programa, no final de cada… “ano letivo”?
Talvez porque um “ano letivo” já não tivesse qualquer sentido, os professores assinalavam o seu início, retomando velhas aspirações, projetos adiados, projetos que talvez pudessem ser realizados no… ano seguinte.
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