Maricá, 25 de janeiro de 2043
Ontem, celebramos o vigésimo quinto “Dia Internacional da Educação”. A ONU achou por bem criá-lo, se bem que já abundassem as efemérides e escasseasse a concretização de intenções.
Como comentava o amigo Valentim, no reino da educação, sobejavam “falsas impressões, sentimentos enganosos”. O advir da “Travessia” demoraria, à semelhança do que acontecera com “Riboaldo, o Tatarana, então Chefe Urutú-Branco, que nunca saiu do Grande Sertão, nem nunca se distanciou do “Bem” e nem nunca se afastou do “Mal”, mas que mostrou que tudo é Travessia”.
A que poderíamos atribuir a demora no “atravessar”?
Sempre que deparo com perguntas metafóricas, arrisco metaforizar. Em parte, a demora ficava a dever-se a um personagem – o “porque não” – que descrevi à Alice, no início deste século e que já fora glosado num livro dos anos sessenta (o da foto, que junto a esta cartinha). Descrevi-o nestes termos:
“O porque não aderia incondicionalmente à regra do “sempre foi assim”. Competia-lhes vigiar o cumprimento das normas e rituais de adestrar as jovens aves. Assim se chamavam por não saberem explicar por que faziam o que faziam – era assim porque era assim… e pronto!
Dificilmente coexistiam com os pássaros-mestres propriamente ditos. Eram aliados das víboras, animais do solo, invejosos e maledicentes. Os pássaros-mestres habitavam as copas inacessíveis. E, à vista desarmada, não havia quem conseguisse distinguir uma espécie da outra.
Aos pássaros-mestres não restava alternativa se não a de piar em segredo, aferrolhados nos galhos altos. Porque, se algum porque não lograsse intuir o perigo da diferença, nunca mais os pássaros-mestres teriam sossego.”
Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a muitas gerações de aves escolarizadas. Difícil tarefa a de te explicar a exclusão de aves privadas da compreensão e do apoio de gaivotas plurais, o emudecer do canto dos bosques esmagado por letais silêncios e sombras.
Há vinte anos, (finalmente!) encontrei uma secretaria de educação disponível para dialogar. Mas, antes de Maricá, foram muitas as tentativas frustradas de esboçar a “Travessia”. Às ofertas de ajuda os porque nãos respondiam que “depois diriam alguma coisa”. Outros alegavam não lhes sobrar tempo para aulas extraordinárias. E até havia porque nãos que se manifestavam disponíveis, na condição de lhes ser aumentada a ração de alpista pela prestação do serviço.
Em discretos ninhos, no mais recôndito das escolas dos pássaros, havia mestres que se arriscavam a questionar a tradicional pedagogia do voar. Cuidadosos, nem sempre estavam prevenidos contra as investidas dos porque nãos, e eram o alvo preferido de aparências de pássaros. Aparências, porque dispunham de asas, mas pássaros não eram – vampiros se chamavam.”
Foi o amor sempre presente no canto das almas sensíveis que comoveu as almas empedernidas dos porque nãos e os redimiu do pecado da ignorância. Uma doce paciência ajudou pássaros doentes a não temer a luz diurna, a não fechar os olhos à claridade.
Crês, Alice, que as gaivotas da estória terão desistido de ser? Não. Porque elas sabiam que até o suave contacto de uma gaivota no cimo da Torre de Pisa poderia acelerar a sua queda.
Há vinte anos, relutantemente, comemorei o “Dia Internacional da Educação”, conversando com a Mónica,a Claudia, o Conrado e a Edilene sobre os porque nãos da altura.. Em 2043, afastados que foram esses nefastos personagens, sobram motivos para comemorar.
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