Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXXX)

Ilha do Governador, 21 de março de 2043

Netos queridos, o texto que encima esta cartinha é da autoria do mestre Morin. E, se me perguntastes por que me refiro a mestres, quando esses mestres fizeram um doutoramento, em verdade vos digo que doutor qualquer ser humano pode ser, mas mestres só alguns.

Mestre é quem possui grande saber e saber fazer, que é perito ou versado em qualquer ciência ou arte. Doutor é qualquer indivíduo que completou o doutorado; quem possui o mais elevado grau acadêmico. 

Piaget dizia que a Educação é a única área das ciências humanas em que todo o mundo se considera competente para dar opinião. Mas, se um doutor em Direito opinava sobre modos de educar, os mestres em ciências da educação poderiam dirimir um pleito em tribunal? Se um doutorado em Medicina se atrevesse a dar opinião sobre as coisas da educação, um mestre em educação poderia fazer operações cirúrgicas?

A fama da Escola da Ponte correu mundo. E começou a atrair famílias de vastas posses. Um doutor em não sei o quê – nunca soube, só sei que o tratavam por “Senhor Doutor” – transferiu o seu filho de uma escola particular para a Ponte.

Pelo Quim da Pita Borrada, vim a saber que esse “doutor em educação” “dava aula na universidade”. 

Nos encontros de sábado à tarde, quando reuníamos as famílias dos nossos alunos, para conversar sobre os projetos de vida dos seus filhos, o doutor não perdia uma oportunidade de nos interpelar e sempre a despropósito.

Certo dia, quando tentava explicar aos pais dos nossos alunos que os seus filhos poderiam aprender de modo diferente do tradicional “bê a, ba”, que poderiam aprender a ler sem ser a partir da letra, o “Senhor Doutor” deitou faladura:

“Isso pode lá ser! Como todos sabemos, todos aprendemos a ler soletrando, partindo da letra para construir palavras. Sempre foi assim!”

“Há outros modos de alfabetizar, a partir da palavra e até da frase.” – respondi.

“Desculpe, mas considero falsa essa afirmação.” – Doutro dixit.

O Tónio Maduro, analfabeto, corroborou a fala do “Senhor Doutor”:

“O Professor Zé que me perdoe, mas eu acho que o Senhor Doutor tem toda a razão.”

Respirei fundo e esclareci.

“Senhor António, diga-me, por favor qual foi a primeira palavra que o seu filho disse”

“Foi “papai”. Fiquei tão contente, Professor Zé!”

“E a segunda?”

“Foi “mu”. Ainda me lembro.”

“Ele viu uma vaca?”

“Foi!”

“E a terceira palavra?”

“Ele viu passar um carro e disse “mu”. Inté pensei que o meu filho fosse bobinho.”

“Nada disso, amigo António! O seu filho é muito inteligente. Repare! 

Ele viu uma vaca, que é um objeto longitudinal com quatro pontos de contato com a terra (as patas) e que emite um som: “mu”. Um carro também é um objeto longitudinal com quatro pontos de contato com a terra (os pneus). 

Quando o carro fez “pópó”, o seu filho subdividiu o “mu” em “um” e “pópó”. Compreendeu?”

“Num sei o que é isso de longi… e o sub… qualquer coisa, mas acho que entendi.” 

Eu fazia uso de conhecimentos de psicologia da cognição, da hierarquização de conceitos, sem disso fazer alarde, explicando em linguagem de gente.

O Tónio Maduro aquiesceu. Mas, despeitado, o Senhor Doutor insistiu:

“É evidente que se aprende juntando letras e não como você diz!”

Ignorei a provocação e perguntei ao Tónio:

“Ó Senhor António, quando o seu filho disse “papai”, o senhor disse-lhe que não era assim que se falava? Mandou-o repetir: “um pê e um a… pa”, um pê e um ai… pai” e, depois, juntar as duas sílabas e dizer “papai”?

“Claro que não!” – respondeu o douto Tónio Maduro, que não tinha feito doutorado – “Não sei o que quer dizer essa coisa das silvas, mas acho que o Professor Zé está certo.”

 

Por: José Pacheco

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