Uruçuca, 11 de abril de 2043
Já não me recordo, netos queridos, de quando iniciei esta troca epistolar. Nem consigo entender por que vos interessais pelas coisas da educação. Tivera eu, hoje, a vossa idade e talvez tivesse escolhido outra opção de vida. Escrever sobre educação não é um exercício de imortalidade. Quem vai além da palavra dita ou escrita e procura coerência na prática, morre em vida vivida, tentando não enlouquecer, por efeito da loucura dos homens.
Mais ou menos por altura de vinte e três, desembocavam nos jornais, na televisão, nas redes sociais, notícias de “ataques a escolas”.
“Adolescente deixa alunos feridos em ataque a uma escola particular de Manaus. O adolescente de12 anos, que teria levado uma arma branca dentro da mochila, feriu ao menos duas colegas de classe. O autor do atentado também se feriu com o instrumento que, segundo outros estudantes, era uma faca de cozinha.”
Nos idos de vinte e três, as distrações do essencial consistiam em inúteis debates sobre o “ensino médio” e a criação de inúteis grupos de trabalho para combater a violência. Se uns ressuscitavam uma teoria da conspiração – dessa vez com algum fundamento, pois persistiam estranhas relações entre governo, fundações e associações empresariais – outros contratavam “especialistas” vendedores de paliativos
Os ataques a escolas e outras explosões de violência eram a ponta de um iceberg chamado “sistema de ensinagem”. Essa aberração emergira há dois séculos e era da natureza do “sistema” o ser violento.
A violência possuía vasto espectro semântico e origens. Medrava entre a infância desvalida de uma favela e a adesão ao tráfico. Entre a pedofilia praticada por clérigos e o estupro perpetrado nos lares de “pessoas de bem”. Entre o abandono afetivo e intelectual no antro de uma sala de aula a contínuas idas ao consultório de um pedopsiquiatra. Entre a violência simbólica exercida por funcionários do sistema e a destruição de projetos e perseguição dos generosos educadores que os produziam. Entre sutis formas de terrorismo digital e o lucro de abútricas empresas do mercado educacional. Entre a corrupção moral traduzida em inúteis congressos e a violência expressa na corrupção intelectual de uma “educação bancária” praticada por freirianos não-praticantes.
Quando ajudava a criar o Projeto Âncora, visitei Casa Redonda de Carapicuíba. E a minha saudosa amiga Maria Amélia presenteou-me com um esboço elaborado por Lauro de Oliveira Lima, no início da década de 1960.
Isso mesmo: nos anos sessenta! A visão percussora do Mestre Lauro impressiona. Embora marcado pela época, o esboço antecipou em trinta anos os primeiros estudos conhecidos sobre comunidades de aprendizagem de origem anglo-saxônica e catalã.
O meu espanto foi maior, quando li a produção científica brasileira disponível sobre comunidade de aprendizagem. As referências bibliográficas e as práticas estudadas eram, quase todas, importadas. Síndrome do vira-lata na comunidade científica brasileira?
Netos queridos, quantas vezes já vos disse que, para uma nova educação, seria necessário conceber uma nova construção social de aprendizagem? Pois ficai sabendo que o mesmo fiz, nos idos de vinte, quando a Humanidade estava mergulhada em confrontos vis, violentada por pragas.
Septuagenário, o vosso avô reivindicava o direito de descansar um pouco. Apelava à intervenção direta de companheiros em críticos projetos. Convidava colegas das ciências da educação para práticas coerentes com o seu discurso. A contradição era insustentável. Era obsceno o seu silêncio.
Por: José Pacheco
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