Cacém, 20 de abril de 2043
Em pleno século XXI, o da suposta valorização de minorias, num lugar remoto do nosso Brasil, escuto narrativas de culturas destruídas. Como aquela que nos fala de um astrônomo que visita uma aldeia, instala a sua luneta e convida um jovem indígena a espreitar constelações.
“Consegues ver a constelação de escorpião?” – pergunta o astrônomo.
“Não. Eu vejo a da onça. O pajé me disse…– responde o jovem.
“Onça? Nada disso! Sou astrônomo. O que tu viste foi a constelação de escorpião.”
Decorridos dois anos, o cientista reencontra o mesmo jovem na universidade. E renova a pergunta:
“Então, meu jovem, já consegues ver o escorpião?”
O jovem indígena responde:
“Consigo ver o escorpião, sim. Mas deixei de ver a onça. Houve um dia em que o escorpião matou a onça.
Ruído na comunicação? Milton Santos dizia ser a comunicação “uma troca de emoção”
Milton sofreu na negra pele um duplo ostracismo. A de um racismo estrutural e uma incomunicabilidade, que não o coibiu de ser um semeador de paz. O seu exemplo nos ajudou a continuar pugnando pelo fim de um tempo em que ainda existiam “duas classes sociais: as dos que não comem e as dos que não dormiam com medo da revolução dos que não comiam.
É bem verdade que, se na pré-história os homens das cavernas viviam em bandos para se defenderem dos predadores, os homens dos idos de vinte viviam em bandos para depredar. Mas, na humana geografia do sul, Milton abria caminhos para uma cidadania plena.
Geógrafo eminente, sabia o que faltava ao Brasil, para que fosse um Brasil fraterno, comunitário. Sabia que seria necessário juntar num mesmo território a educação escolar com a educação familiar e social, adotar princípios definidores de uma nova cultura pessoal e profissional do educador.
Milton sabia que a teorização das práticas não antecedia a prática teorizada, que a dificuldade de comunicar justificava a busca de teoria, com vista a uma práxis coerente.
Era errado pensar que a teoria precedia a prática, assim como errava aquele que na prática desprezava a teoria. A necessária reelaboração cultural requeria a alteração de padrões atitudinais, que eram complexos e de modificação gradual. Nesses processos de transformação, urgia considerar um renovado conceito no campo da formação: o isomorfismo.
Dito em código restrito: o modo como o professor aprendia era o exato modo como o professor ensinava. Seria inútil “capacitar incapacitados”, que alguém servisse o Piaget em dez aulas, quando nunca o praticou. Quando o professor-capacitado voltasse à sala de aula, o Piaget já lá não estaria.
No condomínio de luxo, como nas favelas, foram destruídas as redes de vizinhança, a convivência fraterna. Também por isso, numa formação experiencial em círculo de proximidade ou de vizinhança, na génese de uma nova construção social, deveríamos priorizar a necessidade da transformação do professor-objeto de formação em professor-sujeito no contexto de uma equipe de projeto, na dignidade do exercício de uma profissão-fulcro de mudança social.
Quando perguntaram a Orson Wells como havia conseguido, em seu primeiro filme, realizar uma obra-prima nunca superada na história do cinema, diz-se que terá respondido:
“Por ignorância, porque eu achava que se podia fazer tudo em cinema.”
Netos queridos, na mesma linha de raciocínio e na intenção de provocar a vossa curiosidade, cito Freire:
“Criar o que não existe ainda deve ser a pretensão de todo sujeito que está vivo.”
Isto é: reelaborar o conceito de comunidades de aprendizagem, conceber uma nova construção social é construir um inédito viável.
Por: José Pacheco
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