Alcorochel, 28 de maio de 2043
Netos queridos, que mais vos hei-de dizer que vós não saibais, se tudo já foi dito e redito? A década de vinte da vossa entrada na vida adulta foi, também, o tempo da “adolescência” de um novo sistema de ensinagem, que o vosso avô ajudou a conceber com uma pequeníssima contribuição, de que vos falarei nas cartinhas que vos enviarei no próximo mês. Até lá, vos deixarei com referências àqueles que o anunciaram.
Começo pela Nise, que cuidou da loucura benévola daqueles que estavam no Engenho de Dentro, em nada se comparando à loucura daqueles que, fora do hospício, insistiam em manter um sistema falido, gerador de ignorância e infelicidade. Loucos de que nos falava Einstein, que insistiam no errado, delapidando o erário público em projetos, pactos, programas, capacitações, consultorias, assessorias e outras inutilidades.
Denunciar os maus-tratos infligidos aos ditos “loucos” equivalia a denunciar a guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem liberta e libertadora, na qual os aprendizes lidassem com um conhecimento mutante, “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”.
Muito tempo decorreria até que, à semelhança do Jung, o Brasil a Nise encontrasse. E concretizasse a exigência da Cecília, professora-poeta (ou poeta-professora?), sua contemporânea que, nos jornais do Rio, exigia “educação no lugar da corrupção”.
O Brasil renascia de tempos sombrios e a Cecília lançava um apelo na forma de versos:
“Vem, retira as algemas dos meus braços
Porque a vida só é possível reinventada.”
Nos idos de vinte, decorridos cem anos, as suas corajosas “crônicas da educação mostravam-se atuais, porque nos falavam de indignação. Tal como Freire e outros educadores que, no seu tempo, nos disseram que deveremos exercer o dom da revolta perante as injustiças do cotidiano. Como fizera o Freinet, nos campos de batalha pela liberdade da Europa, consciente de que “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiçados, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos.”
A construção social Escola, que a Cecília denunciou, feita de edifícios com grades, de salas habitadas por solidões, de cartesianas segmentações, de relações hierárquicas e burocratizadas, desprovida de fundamentação científica, sobrevivia, qual cadáver adiado suportado por enfeites paliativos. Para quê mais reformas, mais pactos, se a professora Cecília vivia, em permanência, na idade dos porquês?
Pelos seus dezesseis anos, a Cecília se fez professora. Mas, quando se candidatou à cátedra de literatura da Escola Normal, foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. Porque expressou a sua rebeldia nas páginas dos jornais, pugnando por uma efetiva renovação educacional, sofreu perseguições.
Cecília ousou romper com os tabus de uma sociedade tão moralmente doente quanto a da década de vinte deste século, denunciando um regime que invocava “a Liberdade como sua padroeira”, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”. Propunha “uma reforma de finalidades, de democratização da escola, todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”.
Cecília foi merecedora dos versos que o Manuel Bandeira lhe dedicou:
“Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta
Mas a onda é água que afoga
Tu és enxuta.”
Por: José Pacheco
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