Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXCVII)

Icaraí, 16 de julho de 2043

Generosamente, me avisaram de eu exagerar referências a tragédias. Tinha razão quem me avisou. Embora por boas razões, eu me comportava como um “ressentido” perante uma generalizada indiferença face a duras realidades. As escolas eram consideradas depósitos de crianças. Com ou sem Ritalina, com aulas de reforço ou escolas cívico-militares, a administração educacional privava milhões de jovens do direito à educação. 

Nos primórdios da instrução pública, foram construídos edifícios dotados de pátios internos e rodeados de muros altos, réplicas das praças de instrução militar, destinados à instrução dos jovens. As escolas foram divididas em salas (celas dos mosteiros e prisões) de janelas estreitas e abertas bem acima da estatura dos alunos. Estes eram instalados em filas, separados em grupos etários uniformes e distribuídos por graus de ensino. Foram instituídos programas iguais para todos e criados dispositivos de controle total. 

O toque de uma sineta passou a marcar a cadência de horários de aula iguais para todos, visando a uniformização e o conformismo consentâneos com as necessidades de uma revolução industrial emergente. Os livros delimitavam o conteúdo, a avaliação era confundida com a aplicação de provas-padrão. Cargos diferenciados reforçavam a hierarquização subentendida na relação professor-aluno. A disciplinarização física e psíquica era mantida, através da imposição de inquestionáveis regras, e eram frequentes as premiações e os castigos. 

Nos idos de vinte, ainda que disfarçadas, eram essas as escolas que esperavam a Analu. Para ela desejávamos uma vida feliz. Então, deitei mãos à obra. Tentei descrever o modo como surgiu a escola que para ela desejávamos. Reconheci preocupação e bondade na admoestação de um ser feito de luz, e me dispus a trocar a denúncia pelo anúncio, tanto quanta amorosidade pudesse colocar na descrição. 

E quem era esse “ser de luz”? A avó da Analu.  Com ela reaprendi paciência e fé. Uma fé “pedagógica”, que havia deixado num caminho feito de “pontes” e desencantos. Desaprendera de amar. 

Com a Vovó da Analu, não cantaria o amor de Drummond, que “se refugiara mais abaixo dos subterrâneos”. Cantaria a Vida, por ela ser não mais do que um contínuo ato de Amor, a única realidade possível.

A coragem de Viver era a sua tradução. E, se no país de adoção o mais belo hino do mundo nos dizia que “um raio vívido de Amor e de esperança à terra desce”, porque teria sido amputado o lema positivista inscrito na bandeira do Brasil?

“Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por finalidade” – eis o lema adotado por Benjamim Constant, que, em finais do século XIX, propunha uma “formação adequada aos novos tempos” e pugnava por que a palavra Amor estivesse presente em todas as citações do lema positivista. Em vão tentou. Então que o fizéssemos! Que no Amor, por Amor, pelo Amor, operássemos quotidianos e anónimos gestos de humanização. 

A Analu os mereceria. E, hoje, à distância de duas décadas, a Analu é a tradução viva desses anónimos gestos.

Peço, desde já, desculpa, pela inevitável argumentação de caráter “científico”, que deverei utilizar. Peço, pois, a vossa compreensão, acaso aquilo que irei recolocar nestas cartas vos perturbar. O Jung já dissera que “temos medo de nos conhecermos, mergulharmos em nossos vazios e medos, entrarmos em contato com esses aspetos tão sombrios de nós mesmos, em suma, com o sofrimento”. 

Se o não o fizermos, não poderemos aceitar-nos e sem isto, dificilmente construiremos relações felizes e conseguiremos sentir-nos realizados.

 

Por: José Pacheco

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