Morro do Estado, 11 de agosto de 2043
“Os meus sobrinhos não sabem o que é brincar na rua. Não conhecem a própria rua. Não têm amigos na sua comunidade imediata, não conhecem a sua comunidade. Conhecem o mundo pela tela dos telefones, mas desconhecem o nome dos vizinhos da porta do lado e das casas ao lado.
Estou convicta de foi a ausência de um sistema educativo de qualidade que facilitou e permitiu essa desconexão com o nosso sentido de identidade pessoal, cultural e social.
Confesso ter ficado muito emocionada com a sua mensagem enviada ontem. Mergulhei numa volta ao tempo. Ouvi o “The long and winding road”, várias vezes, porque nunca conheci alguém assim, tão resiliente”.
Cinquenta longos anos de estrada depois de ter conhecido e trabalhado com a autora dessa carta, eu tinha uma mão cheia de nada e a outra de coisa nenhuma. Como Sísifo, voltaria a subir a montanha, para deixar a pedra rolar montanha abaixo?
No agosto de há vinte anos, coloquei um ponto final nessa saga de sonhos frustrados. Segui o freireano conselho – Amor e Coragem – até às últimas consequências.
Numa visita à Ponte de há muitos anos atrás, um ministro tinha feito este comentário:
“Professor, o senhor é muito esperto. Permanece dentro do sistema, tentando mudar o sistema… e nós ainda lhe pagamos por esse descervício.
Não se iluda. Não conseguirá mudá-lo.”
O ministro tinha razão. O sistema não havia melhorado com a aplicação de modismos e paliativos, mas também não mudara pela via do confronto.
Trocamos o confronto pela amorosidade e ousamos a coragem de desobedecer. Paramos, para repensar. Fizemos uma revisão de processos, reparamos erros, seguindo os conselhos do Tolentino:
“Gosto da palavra reparar, pois transporta para o ato de ver uma polissemia e uma ética. Reparar introduz-nos por si só numa lentidão, porque aquilo a que alude não é um observar qualquer: é um ver parado, um revisar porventura mais minucioso do que um mero relance; é uma visão segunda, uma nova oportunidade concedida não apenas ao objeto, nem sequer apenas ao olhar, mas à própria visibilidade, isso que Merleau-Ponty dizia ser o único enigma que a visão celebra.
Mas, reparar é mais do que isso: põe também em prática uma reparação, um processo de restauro, de resgate, de justiça como se a quantidade de meios olhares e sobrevoos que dedicamos às coisas fosse lesivo dessa ética que permanece em expetativa no encontro com cada olhar. Por isso, de certa forma, só quando reparamos começamos a ver.”
O autor destas sentenças fazia lembrar Saramago: “se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. E, no agosto de vinte e três, a mudança de rumo não visou um “regresso ao passado”, mas tão só um “desvio de rota”.
Do sul brasileiro, chegavam esperançosas notícias. De Portugal, outras tantas – Chegara a hora! – Mas, era do Morro que chegava o apelo maior:
“O quanto nos perdemos na essência do aprendizado! Até mesmo como olhamos a vida das crianças daquela geração.
Hoje, nossas crianças já não são assassinadas mais por armas de fogo. Mas são fuziladas, diariamente, pela ausência de políticas públicas e um sistema educacional falido. Em meio a violências, abuso sexual, desemprego, muitas de nossas crianças estão mortas com um celular na mão, que, na vida adulta, trocam por drogas, armas e muitos filhos.
Muitas vezes, nós sentíamos numa ilha na cidade que exclui e nos tira a voz. Obrigado, por vocês estarem construindo pontes de esperança para dias melhores.
Sensível ao sofrimento alheio, a Vovó Ludi lá foi, morro acima. E, num corpo desgastado por décadas de andarilhagem, ainda achei um resto de energia para a acompanhar.
Por: José Pacheco
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