Mendes, 17 de agosto de 2043
Me encantei com o encantamento da Tamires. Em cúmplices rodas de conversa, tímidos alunos se revelaram crianças abertas a surpresas, que “se abriam e queria apresentar trabalhos”. Que sorriam perante as folhas de alface, que haviam semeado na horta. Crianças de fala suave, respeitando sinais de pedido de palavra. Crianças que, presenciando uma professora molhada pela chuva, lhe fizeram uma promessa:
“Vamos juntar um dinheiro para comprar um carro para você.”
A recém-chegada Adriana mostrava-se surpreendida:
“São muito questionadores. Eles cobram direitos, mas também cumprem deveres. E, quando surge um problema e eu o vou resolver, já está resolvido. Eles já o resolveram. Eles se respeitam uns aos outros. Eu também trabalho em outra escola. La é diferente. Não vou nem falar! Levarei estas práticas para lá.”
O Bruno, que “não é professor do terceiro ano, que é professor da escola”, diz ser possível efetuar mudanças:
“Todas as armaduras têm uma brecha”
Pois tinham. E, num final de tarde, em Mendes, depois de colhidos deliciosos testemunhos de meigos atos, de um breve encontro emergiu uma deliberação: voltaríamos a praticar Darcy.
A clarividência do Darcy conduzira-o à conclusão de que a crise da escola era um projeto engendrado por pessoas, cujos ações iam na contramão da história. Esse malfadado projeto de escola e de sociedade engendrara uma “crise da educação, que não era uma crise, mas um projeto”.
As obras do Mestre Darcy sobre a identidade da América influenciaram estudiosos latino-americanos críticos da visão eurocêntrica presente nos estudos sobre os povos originários do Brasil e do sul. Darcy afirmava que, nos trópicos, havia uma outra forma de se viver e de sentir a vida. A Educação do sul não era o atraso, mas o futuro do mundo.
No último dia de janeiro de vinte e dois, eu fora até ao lugar onde Darcy, quarenta anos antes, lançara o seu projeto de Educação Básica. Fui ajudar a Maria Paula e os professores de Mendes a celebrar o legado de Darcy.
Reiteramos a promessa de voltar ao lugar do “Encontro de Mendes”.
No fevereiro de vinte e dois, o sonho de Darcy já começara a tomar forma. Começara a demolição do aparato instrucionista. E a Maria Paula preparou o melhor de encerrar o ciclo de visitas às escolas, que iriam participar do projeto: a inauguração de um “Observatório da Aprendizagem”.
Sala cheia de cidadãos de Mendes, de educadores, de amigos. A prefeitura fez-se representar pelo subprefeito Jiló. Esteve presente o Presidente do Conselho Municipal de Educação, vereadores e convidados. O breve discurso do jovem nonagenário Célio foi comovente. Observei a reação da Aline, as lágrimas de emoção verdadeira, que lhe caíram pelo rosto. Senti a presença de Freire, estava na companhia de educadores sensíveis, amorosos, corajosos. Freire estava bem acompanhado. Ali, havia verdade.
Senti que valera a pena ter ido até lá. E prometi voltar. A Maria Paula tinha reunido uma equipe capaz de colocar a educação de Mendes no século XXI. Ali, se construiria comunidade. Ali, se tentava unir o que um sistema obsoleto de ensino havia desagregado. Celebrar Darcy não poderia consistir apenas em dissertar sobre o Mestre e sobre a sua obra. Seria, antes, atualizar e cumprir o seu projeto.
Na assunção desse princípio, nas duas margens do Atlântico, algo imparável acontecia: o questionamento de “verdades eternas”, a indagação da origem de “instaladas culturas”. Por que não produzir teoria na prática (ou na práxis, melhor dizendo)?
Entre agosto e dezembro dos idos de vinte e três, praxeologicamente, agimos.
Por: José Pacheco
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