Mendes, 20 de agosto de 2043
Ainda andarilhando por terras darcinianas, que percorri, faz agora, precisamente, vinte anos, vou relendo “O Povo Brasileiro”. Estou crente de que o câncer consumiu o último sopro de vida de Darcy e o impediu de ir além. Redescubro nessa obra “inacabada” velhos motes de eternizadas causas.
“A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres aos ricos. A ela se soma a discriminação que pesa sobre índios, mulatos e negros. A luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi – e ainda é – a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional.”
Em “O Povo Brasileiro”, Darcy nos conduz pelos caminhos da formação de um povo e de uma nação. “Brasil” é uma palavra que pertence à toponímia utópica de tempos medievais, designando uma terra da felicidade imaginada. Mas, não foi esse país sonhado que Darcy descreveu, quando a sua pátria dormia distraída, sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações.:
Como vos disse, nas cartinhas imediatamente anteriores a esta, Darcy tentara, nos idos de oitenta, criar condições de se fazer um país de todos, através da garantia de uma boa educação para todos. Porém, nos idos de vinte, a Lei de Bases, que fez aprovar nos idos de noventa, continuava sendo letra morta. De imbecilidade em imbecilidade, se ia adiando a agonia do velho sistema de ensinagem.
O governo de um estado determinou que diretores das escolas assistissem, semanalmente, a uma ou a duas aulas dadas pelos seus professores. E que produzissem relatórios sobre o que observassem nas salas de aula. O objetivo anunciado seria o de “fortalecer o protagonismo e autonomia do educador em sala de aula” (sic).
Em pleno século XX, ainda havia quem desse aula, em sala de aula. E “especialistas” saídos das catacumbas da educação do século XIX consideravam importante que a secretaria esclarecesse o que seria feito com os relatórios,
“Porca miséria!” – diria o compadre de Cense (em outra cartinha, dele vos falarei). E o que restava de instrucionismo se refletia na decisão de o mesmo estado não aderir ao programa nacional de livros didáticos e oferecer apenas conteúdo digital. Após pressões várias, decidiram imprimir e encadernar livros digitais.
De disparate em disparate, esse “cortejo de horrores” competia com o inútil debate sobre o “novo ensino médio”. Aprendizes de feiticeiro insistiam na reciclagem de uma distopia. Quando alguém queria saber o que o vosso avô “pensava sobre o assunto”, respondia que nada pensava, apenas perguntava:
“O que é o “ensino médio”? Por que existe “ensino médio”? Em que século estais?”
Nada respondiam e deixavam de perguntar a minha opinião, sabe-se lá porquê!
Os ingénuos autores de uma “reforma” acreditavam que o sistema melhoraria quando, “pelo menos um período por dia fosse dedicado ao desenvolvimento de atividades interdisciplinares”. Só “um período por dia”! Ou “quando houvesse espaço para que professores trabalhassem por projetos em algumas disciplinas”. Só em algumas disciplinas! Ou, ainda, quando “no último ciclo, os alunos fossem protagonistas do próprio aprendizado”. Porque, na opinião desses “especialistas”, somente no último ciclo aconteceria aquilo a que chamavam ”emancipação social e cidadã dos alunos” (sic).
Pobre Darcy! Imaginava-o, dando voltas no seu túmulo, no cemitério de Botafogo. Sabia que se confessara ateu, mas, se alguma influência tivesse junto de Deus, eu lhe pedia que Lhe pedisse para perdoar áulicos, especialistas e governantes, porque eles não sabiam o que faziam.
Por: José Pacheco
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