Macieira da Lixa, 16 de setembro de 2043
Queridos netos, se ainda fosse vivo, o vosso bisavô faria anos neste dia. Há vinte anos, comemorei a data no convívio com educadores.. Eram encontros de regeneração, de humanização aqueles que, todos os sábados, realizávamos. Mas, apesar de denodados esforços, a escola verbalista e antidemocrática denunciada por Freire resistia e provocava sofrimento. Recordo-me bem, como se fora hoje, do choro de uma professora, vai para uns quarenta anos. Numa breve pausa no trabalho que com ela fazia, na sua sala de aula, assim se expressou:
“Nunca vi os meus alunos tão interessados. Gosto muito deles. De todos!”
“Não estarás a mentir?” – interrompi-a – “Tu gostas mais de uns do que de outros, certamente. E haverá alguns com quem não simpatizas…”
Passou umas contas no quadro, os jovens ficaram fazendo o exercício, e ela pediu-me para sairmos da sala.
“Espera-me no bar. Na sala dos professores, não! Não tarda, toca o sinal e irei lá ter.”
Esperei-a no bar.
“Tens razão, Zé. Há alunos que eu não consigo alcançar. Confesso até que não gosto deles. E sinto-me muito mal com isso. Vou para casa e eles não me saem da cabeça. O que poderei fazer?”
Havia professores sensíveis, e lágrimas furtivas correram pela sua face. Confortei-a. falei-lhe de um drama vivido, alguns anos antes.
Avisaram-me:
“Cuidado com o Teixeira! Dizem que é autista e, além disso, é mal-educado e preguiçoso”.
Estava quase a fazer treze anos, na primeira classe. Não sabia ler nem escrever. Tinha saltado de professor para professor, em turmas indesejadas. Era conhecido pelo nome de família, pois o nome próprio ninguém parecia conhecer.
“O colega imponha-se, o colega defenda-se!”
Não me “defendi”, porque foi esse o ano em que deixei de “dar aula”, criando condições de criação de vínculos. Foi, também, nesse ano, que me apercebi de que escolas são pessoas. E foi fora do prédio da escola que o “vínculo” foi criado, descobrindo que o Teixeira nunca tinha sido autista na sua vida.
Fora criado entre ovelhas, das cinco horas da madrugada ao meio-dia de todos os dias. Tinha vivido entre uma casa vazia e o vazio de uma escola, entre as treze e as dezoito horas de todos os dias. E deitava-se todos os dias com as galinhas, antes que os seus pais regressassem da fábrica.
Num sábado de manhã, quando eu esperava o ônibus que me levaria para o aconchego do fim de semana em casa, vi o Teixeira a atravessar a estrada varejando o rebanho. Arredou as ovelhas para um valado e sentou-se numa pedra a uma distância prudente da paragem do autocarro. Com o cajado batia pedras para o outro lado da estrada, como quem estava distraído.
Não poderia dar-me ao luxo de perder o ônibus, pois só havia um aos sábados. A tentação foi mais forte do que a prudência. Lancei olhares insistentes para a curva da estrada de onde haveria de surgir o ansiado transporte. Lancei outros tantos olhares para o lado da estrada onde estava o Teixeira. E o dilema resolveu-se.
Dei alguns passos na sua direção, como se me acercasse de um pássaro que, a qualquer momento, poderia levantar voo. Captei-lhe o olhar. Sorriu. O “autista” não fez menção de se levantar.
Percorri os metros que faltavam, hesitante, deitando olhares para trás, não viesse aí ônibus. O Teixeira já respondia, ora com a cabeça (que sim, que não), ora com os ombros (quero lá saber!).
Na paragem, ninguém. O condutor do ônibus ainda reduziu a velocidade, deitou um olhar para a mala pousada nas pedras à margem da estrada. Faltou-me coragem para estender um braço e fazer-lhe paragem. E o outro braço estava, fraternalmente, pousado sobre o ombro do “autista”.
Por: José Pacheco
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