Ilha dos Tigres, 18 de setembro de 2043
No mesmo dia, duas notícias me deixaram deveras incomodado. Uma professora se recusava “dar aula” a um aluno “especial” – abandono intelectual evidente e impune. Um diretor que, após a insistência da mãe de um autista, efetuou a matrícula da criança, mas avisando que não sabia ensiná-lo. Como poderia um professor dizer “não sei”?
Algo semelhante aconteceu comigo. Foi nos idos de setenta e dois. Fui colocado numa escola da cidade do Porto. Na reunião da composição de turmas, a professora mais antiga ia distribuindo os alunos da primeira classe:
“Ó Dona Flora, de quem é filho este miúdo?
É neto do senhor doutor Horácio, minha senhora.
Então fica nesta lista. E este aqui?
Esse, minha senhora, é da “ilha” lá de baixo, é filho da mulher a dias da professora Fernanda. Não se sabe quem é o pai…
Então, vai para a turma do colega.”
O “colega” era eu. Perguntei qual era o critério da distribuição dos alunos.
“Não tem critério nenhum, colega! Você é o mais novo, apanha com aqueles que ninguém quer.”
Perguntei por que “não queria”.
“Por que não sei trabalhar com esses piolhosos, esses burros, que nem sabem quem é o pai.”
“Se não sabe, por que não vai aprender?”
A pergunta saiu-me cara. Furiosa, a velha docente saiu da sala e foi contar ao marido o sucedido, a minha “falta de respeito”. O marido era “informador” da polícia política da ditadura. Imaginai o que me aconteceu…
Entre esse dia e aquele em que fui obrigado a deixar essa escola, fiz aquilo que qualquer professor faria: aprendi modos de ensinar os “piolhosos e burros”. Eram crianças maravilhosas, apenas carentes de alimento e de afeto.
Trinta anos decorridos, o Paulo pediu-me conselho:
“Qual será a melhor escola para matricular a minha filha na primeira classe?”
Lacónica e sinceramente, respondi:
“Há bons professores em todas as escolas.”
O Paulo não desarmou:
“Não é bem assim. Na minha primeira classe, de há trinta anos, eu tive dois professores. Um tratou-me tão bem que eu nunca mais o esqueci. A outra foi uma cabra, que me fez odiar tanto a escola, que me raspei dali para fora“
“Como é que foi?” – retorqui.
“Eu era muito pobre e a professora pôs-me ao fundo da sala, ao lado da fila dos burros.”
“E o outro professor?” – demandei.
“Esse era muito diferente. Tratava-nos a todos com meiguice e paciência. Nunca nos bateu. E nós até éramos para aí mais de trinta e difíceis de aturar. Se eu hoje sou alguma coisa devo-o a ele. Ainda hoje me lembro dele, quando tenho de decidir da minha vida.”
“Sabes o que é feito desse professor, onde estará?”
“A meio da primeira classe, ele chamou-nos, um a um, ainda me estou a lembrar quando chegou a minha vez. Abaixou-se, pôs-se da minha altura e disse-me: Paulinho, eu vou ter de ir embora, não quero mas tenho de ir para a guerra.
Até me deu vontade de chorar, mas disse que sim co’a cabeça, que eu até sabia que o Eduardo, lá da minha rua, tinha morrido na guerra de Angola.”
Um súbito pressentimento me levou a perguntar:
“Paulo, em que escola andaste? Em que ano entraste na escola?”
O Paulo respondeu. E era o mesmo ano e a mesma escola onde eu havia cuidado da turma dos “piolhosos e burros”. Arrisquei esclarecer uma última dúvida:
“Como era esse professor?”
“Era mais ou menos da sua altura. Andava sempre vestido de preto e usava sandálias. Tocava violão e ensinava-nos canções bonitas. Tinha o cabelo comprido…”
A descrição feita pelo Paulo ajustava-se, perfeitamente, à pessoa que o seu amigo e professor tinha sido, trinta anos antes – era eu.
Eu sei que a possibilidade de ocorrer algo assim é de um para um milhão. Mas aconteceu. Porque não é por acaso que há acasos.
Por: José Pacheco
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