Grajaú, 20 de setembro de 2043
Consta que José Vieira de Morais foi o primeiro paulistano a formar-se em pedagogia. Nas décadas de trinta e quarenta, numa casinha de madeira e aos fins de semana, Vieira alfabetizava trabalhadores construtores da Represa Billings. Nada mais justo do que dar o seu nome à escola que, neste mesmo dia do setembro de há vinte anos, eu tive o privilégio de visitar.
Nela encontrei educadores dedicados, o Gabriel, o Jailson, a Simone, o Wilson, a Beatriz, a Luma e outros extraordinários seres humanos, que me deram a conhecer a estória do professor Vieira. E, numa inesquecível manhã, centenas de jovens críticos e atentos questionaram, escutaram, dialogaram com o vosso avô. Guardo dessa escola uma feliz recordação.
O mesmo não poderei dizer de outros encontros. Em mais de meio século, foram centenas as oportunidades de diálogo perdidas. Contam-se pelos dedos os frutuosos debates, raras foram as situações de diálogo construtivo.
Sempre que algo eu afirmava e alguém de mim discordava, eu propunha o diálogo. Se esse alguém discordava, certamente teria razões para discordar. Isto é, argumentação contrária. Supunha que o meu interlocutor possuísse conhecimentos que eu ignorasse. Encarava a situação como oportunidade de troca de ideias, de saberes e de saber-fazer, oportunidade de aprender.
Quando, fraternalmente, eu apresentava argumentos, frequentemente, deparava com uma reação autoritária. “Superiores hierárquicos” prepotentes (tenebrosos personagens, que muitos danos causaram à educação dos jovens)
impunham a “sua lei”. “Teoricistas” doentes de instrucionismo instalavam polémicas estéreis, alardeando erudição balofa.
Netos queridos, embora no ano da graça de 2043 seja difícil acreditar, os funcionários do “sistema” comportavam-se de modo hierárquico e autoritário, atitudes em tudo contrário ao fomento do diálogo e ao respeito devido aos professores. Era pesada a herança cultural feita de séculos de esclavagismo e coronelismo – a praga das castas sociais, políticas, religiosas, se reproduzia. Genética cultural, certamente, também fruto de um obsoleto modelo de educação familiar, social e escolar.
Até à década de trinta, ainda se manteve o regime hierárquico, o regime de castas caraterístico da funcionarização dos docentes. Os professores estavam “escalonados”, recompensados pelo Estado em função do tempo em que lhe fossem leais servidores.
Quem convivesse com altos funcionários dos ministérios compreenderia a manutenção de tais absurdos. Eram exímios no arrazoado sócio construtivista e, com frases de belo efeito, se diziam apologistas do paradigma da comunicação e de inovadoras transições paradigmáticas, quando as suas práticas radicavam num paradigma nascido no século XVIII.
O modelo escolar imposto pelo Estado deteriorara tão profundamente o sistema de relações, que deparei com algo inimaginável. Encontrei uma escola com duas salas de professores Uma delas acolhia professores efetivos (os “concursados” brasileiros); na outra, os professores “agregados”, do “quadro de zona”, os “substitutos”.
Escolas havia em que estagiários eram proibidos de tomar café no bar dos professores. Havia professores de “horário zero” e aqueles que só iam à escola três dias em cada semana, beneficiando de reduções de componente letiva por “serem velhos na profissão”.
Sei que acreditareis no que escrevo, porque é o vosso avô que o diz. Era inaceitável que ministérios legitimassem discriminações, castas e privilégios. Maus exemplos eram dados às novas gerações.
Por: José Pacheco
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