Butantã, 21 de setembro de 2043
Quando me preparava para rabiscar mais uma missiva e remexia no baú das velharias em busca de boas memórias, encontrei um registo de um incidente crítico de que, amanhã, vos falarei. Esse incidente reforçou a necessidade de os projetos de mudança e inovação providenciarem efetiva autonomia – à partida, apenas pedagógica e administrativa – sem a qual raramente sobrevivem.
O “sistema” era astuto. Identificava projetos dissidentes e usava de autoritários processos, para os destruir. Era da natureza do “sistema” ser autoritário, e o Ademar o demonstra num prefácio escrito no final do século passado.
“A estória do Titanic é uma das mais poderosas metáforas sobre o sem sentido da escola contemporânea. Também ela se acredita invulnerável e insubmersível; também ela, pressentindo o perigo, acelera o passo em direção ao abismo; também ela navega com passageiros a mais e salva-vidas a menos; também ela parece ter sacrificado a segurança da viagem à ilusão efémera do espetáculo; também ela exige as maiores provas de abnegação e subserviência aos seus profissionais; também ela, em situação de catástrofe, só está preparada para deixar salvar os passageiros que viajam em primeira classe; também ela segue, confiante e autista, a mais suicida das rotas; também ela, no berço matricial, parecia fadada para um destino glorioso.
A maior crítica que se pode fazer à escola contemporânea não é, porém, a de que ela ignora as utopias, mas antes parece acreditar na mais perversa e desumana das utopias – a utopia de uma sociedade também ela curricularizada (e programada) em que todos deveriam pensar o mesmo, sentir o mesmo, saber o mesmo, dizer o mesmo, sonhar o mesmo…
O currículo que dá sentido à escola contemporânea (ou, melhor dizendo, ao modelo dominante e totalitário de escola contemporânea) não é mais do que um imenso e complexo programa de produção em série de pinóquios replicantes – mulheres e homens cada vez menos diferentes uns dos outros e cada vez menos autores de si próprios e dos seus destinos…
Lembro-me muitas vezes do que um dia escreveu o grande pedagogo brasileiro Rubem Alves (*):
- Wright Mills, um sociólogo sábio, comparou a nossa civilização a uma galera que navega pelos mares. Nos porões estão os remadores. Remam com precisão cada vez maior. A cada novo dia recebem remos novos, mais perfeitos. 0 ritmo das remadas se acelera. Sabem tudo sobre a ciência do remar. A galera navega cada vez mais rápido. Mas, perguntados sobre o porto do destino, respondem os remadores: “0 porto não nos importa. 0 que importa é a velocidade com que navegamos.”
- Wright Mills usou esta metáfora para descrever a nossa civilização por meio de uma imagem plástica: multiplicam-se os meios técnicos e científicos ao nosso dispor, que fazem com que as mudanças sejam cada vez mais rápidas; mas não temos ideia alguma de para onde navegamos. Para onde? Somente um navegador louco ou perdido navegaria sem ter ideia do para onde.
Em relação à vida da sociedade, ela contém a busca de uma utopia. Utopia, na linguagem comum, é usada como sonho impossível de ser realizado. Mas não é isso. Utopia é um ponto inatingível que indica uma direção. Mário Quintana explicou a utopia com um verso de sabor pitanga:
“Se as coisas são inatingíveis… ora!/Não é motivo para não querê-las …/Que tristes os caminhos, se não fora/A mágica presença das estrelas!”
Amanhã, vos falarei de “tristes caminhos” e da presença das estrelas.
(*) (Rubem Alves, O Homem Deve Reencontrar o Paraíso, in Por uma Educação Romântica – Brevíssimos Exercícios de Imortalidade)
Por: José Pacheco
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