Camboinhas, 1 de novembro de 2043
Nas palestras (que eram diálogos) dos idos de vinte, o vosso avô contava a estória de uma visita feita a uma escola considerada “inovadora”.
Cheguei à escola – leia-se: prédio onde pessoas estavam instaladas, para supostamente ensinar e aprender – uma hora antes de um combinado encontro.
O portão se abriu. Uma carrancuda criatura perguntou ao que eu ia. A senha “sou membro do Conselho de Educação” abriu caminho. À entrada, uma horta mirrada e lixo espalhado pelos canteiros. No átrio, murais com comunicados, notas de exames, a habitual parafernália burocrática.
Visitei o banheiro dos alunos. Fotografei dísticos como aquele que junto a esta cartinha. Anotei “inspiradoras” frases ilustradas com desenhos fálicos e outros que, por pejo, não direi.
Depois, fui até à biblioteca. Estava vazia. Melhor dizendo, num canto, havia uma criança. Perguntei-lhe o que estava a fazer.
“Ontem, a senhora diretora foi à minha sala e disse que, hoje, vinha cá um senhor para nos ver a fazer projetos. E disse para a nossa “setôra” (era o modo como os alunos chamavam o professor, uma abreviatura de “doutor”) mandar um menino para a biblioteca. Estou à espera dos meus colegas das outras turmas.”
Estávamos no tempo da famigerada moda da “pedagogia dos projetos”. Partia-se de “temas” para um “faz de conta”. Despedi-me da criança e fui percorrer corredores invadidos por gritos de professores, entrecortados pelo alarido coral de alunos, repetindo melopeias.
Quando me aproximava da “sala dos professores” – muitas vezes, perguntei onde era a “sala dos alunos”, mas nunca alguém me informou –, eis que uma senhora com ar grave me interpela:
“O senhor é o Professor José Pacheco?”
“Sim, sou.”
“Eu sou a diretora da escola. Doutora fulana de tal. Só esperava o senhor conselheiro pelas quinze horas. Foi isso que me foi comunicado pelo Conselho Nacional de Educação.”
“Sim. Mas, cheguei mesmo agora.
“Ah! Pois…” – suspirou (de alívio).
Convidou-me para entrar na “SALA DA DIREÇÃO” (assim, tudo em maiúsculas) e para eu me sentar. Contornou uma mesa imponente, sentando-se do lado oposto.
“Então, o que o traz por cá, senhor conselheiro? Certamente, disseram ao senhor conselheiro que esta é uma escola inovadora. Como vê nesta estante, temos recebido muitos prémios.”
A senhora diretora interrompeu um longo silêncio:
“O senhor doutor (Portugal era um país de “doutores”) é professor em que universidade?”
“Também trabalho na universidade, mas sou professor do Ensino Básico.”
O rosto da senhora diretora não disfarçou a surpresa.
“Do Básico? Nem do Secundário?”
“Minha senhora. Sou professor do Ensino Básico.”
“Nunca vi um caso assim! Quando um professor passa a doutor, vai para o Ensino Superior.”
“Prefiro continuar no “inferior.”
“Como disse? Inferior?”
“Sim, cara senhora” – eu estava a ficar farto daquele desconversar – “Se existe um ensino “superior”, certamente, haverá um “inferior”. A linguagem produz e reproduz cultura…”
“Bom! Vamos ao que interessa! Saiba o senhor conselheiro que esta é uma escola construtivista.”
O enfado me ajudou a não prestar atenção ao fundamentalismo pedagógico que a expressão encerrava. Mas, a senhora diretora insistiu:
“Somos como a Escola da Ponte. E o senhor?
Poderia alimentar um diálogo construtivo, ou me intitular “pós-construtivista.”, mas a impaciência me traiu, quando a senhora diretora inquiriu:
O senhor doutor também é construtivista?
“Talvez seja mais…destrutivista.” – respondi.
Um sorriso amarelo atravessou o rosto da senhora diretora. E do resto da reunião nem é bom falar.
Por: José Pacheco
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