Morro do Estado, 3 de novembro de 2043
A escassos dias de nova viagem a Portugal, tive ensejo de voltar à Escola “Ayrton” e de reunir com professores da Escola “Júlia”, lugares onde as crianças do Morro do Estado eram acolhidas e cuidadas. Em ambas, conheci educadores e educadoras com disponibilidade para, partindo do que eram e do que sabiam, empreender transformação, rever práticas, inovar.
Na “Ayrton”, na sequência de formação presencial, propus estudo e instalação de dispositivos. Ironizei, dizendo serem essas tarefas “dever de casa” (naquele tempo, ainda havia professores que encomendavam “deveres de casa). Em Niterói, até havia uma empresa com o nome… “Meu Dever de Casa”. A mercantilização da Escola Pública mostrava-se exponencial. Às “deserções” para o ensino doméstico, para o ensino individual, para escolas particulares juntava-se a “sangria” das empresas conhecidas como “centros de estudo”, centros de explicações”, de “aulas de reforço”. de “aulas de recuperação de aprendizagem”, de “aulas de preparação de provas nacionais”.
Por força da criação de atividades de contra-turno, crianças eram submetidas a doses duplas de tédio. Com a criação do “apoio à família” (trabalho de Babysitter) e de “atividades de enriquecimento curricular” (melhor dizendo, de desculpabilização curricular), se acrescentava algumas horas para além das passadas dentro de salas de aula, sendo os jovens submetidos a uma abusiva e absurda “ocupação do tempo livre”. E, confundindo “educação integral” com educação em tempo integral, “especialistas”, “doutores”, “assessores” e “consultores“ – destes vos falei na cartinha de ontem – castigavam a infância com aquilo que o amigo Tião chamou de ”serviço militar obrigatório aos seis anos”.
Se os interpelava, por não saberem que resposta dar, reagiam com rancor. Tão dogmáticos quanto privados de elementares saberes das ciências da educação, se quedavam silenciosos perante simples questionamentos:
Se existia a intenção de “transformar as relações entre as pessoas em outra lógica que não a da competitividade, mas a da cooperação”, por que se insistia m perenizar uma escola competitiva, seletiva, excludente?
Por que havia sala de aula? Por que ainda se “dava aula”? Por que razão uma aula durava cinquenta minutos?
Por que havia ano letivo, semestre, trimestre, bimestre, “carga horária”? Por que havia ciclo e ano de escolaridade?
Por que razão o banheiro (quarto de banho português) dos alunos não era, também, dos professores? Não conseguindo dar resposta a estas e muitas outras perguntas, alimentavam absurdos, indiferentes aos trágicos efeitos do “sistema”.
Por muitos anos, a Educação permaneceu à mercê de “aprendizes de feiticeiro” e fragmentada em: “formal”, “informal”, “quilombola”, “do campo”, “financeira”, “para a paz”, “para a saúde”, “para o trânsito”, “ecológica”, “ambiental”, “superior” (e “inferior”?), “religiosa”, “laica”, “pública”, “particular”, “familiar”, “escolar” (por sua vez, segmentada em: “infantil, fundamental, média, básica, secundária”), “personalizada”, “individualizada”, “holística”, “ao longo da vida”, “municipal”, “estadual”, “federal”, “para a cidadania”, “de adultos”, “de povos originários” e outros adjetivos à palavra “educação” colados, se perdendo a noção de conjunto e adiando um re-ligare essencial. .
Era tamanho o desperdício, que cheguei a pensar desistir do papel de “Grilo do Pinóquio” e fazer a minha parte, me alienando, parcialmente. Mas, eis que surge uma nova geração de esperançosos pais e professores.
Por: José Pacheco
190total visits,6visits today