Leiria, 10 de novembro de 2043
De manhã, bem cedinho, o amigo João me levou da Foz do Arelho até Lisboa. No dia anterior, a Rita me levara para as Caldas, para um auspicioso encontro.
Este vosso avô continuava tão andarilho como dantes. Porém, convicto de que uma nova geração de educadores (pais, professores, gestores) iria, em breve, prescindir dos meus préstimos e eu poderia (enfim!) descansar.
Depois de um belo repasto e de agradável conversa regada a tinto da casa, na casa da Magda e do Bernardo, lá fui até Leiria. À chegada, a incansável Andreia me esperava, com um farnel a preceito, para que o vosso avô não fosse dormir com o estômago vazio. Eu não tinha casa nem dinheiro, mas era rico de amigos. Seguiu-se um sábado de boas surpresas.
Em 1996, eu havia desistido de fazer formação. Em 1992, tinha criado o primeiro centro de formação contínua e também tinha o primeiro alvará de formador e de consultor de formação. Eu me senti como o maior responsável pelo caos instalado na formação.
O Centro de Formação da Associação PROF realizava, única e exclusivamente, círculos de estudo, enquanto os cardápios de outros centros eram preenchidos com velhas modalidades, como o curso, o módulo de curso, seminário, estágio. Chegados a meados dos anos noventa, a formação era uma grande mentira construída sobre vinte milhões de euros. E eu não poderia pactuar com mentiras.
Mas, há vinte anos, educadores da região de Leiria me levaram a preparar uma ação de formação. Com a Hélia, concebi um círculo de estudos. Voltei à formação.
“Professor, está mais animado?”
À primeira pergunta respondi afirmativamente. E o que se seguiu me animou ainda mais.
Partimos do contexto de uma sala de aula da Escola Superior de Educação de Leiria. E, num sábado de há vinte anos, a avaliação da formação foi um ato de partilha de descobertas.
Consegui ficar seis horas saboreando evidências de aprendizagem, sem abrir a boca, sem julgamento, nem questionamento. Apenas escutando com enlevo e respeito manifestações de uma nova profissionalidade, de uma nova consciência e da prática de necessária mudança. Tinha sugerido que estudassem autores que, de algum modo, tivessem influenciado essa prática, dado que não há prática sem teoria e todos deveriam saber fundamentá-la cientificamente. E as apresentações abriram com… Paulo Freire.
“Antes e durante sermos professores. nós somos pessoas. Freire no disse. Somos todos aprendizes.”
Em seguida, uma Montessori, que foi médica, psicóloga e má aluna, pois só aos treze anos conseguiu completar a instrução primária. Biografia exposta, a par de relatos de trabalho em equipe de professores e pais, vídeo e dramatizações a acompanhar a descrição dessa educadora exemplar, manifestações de criatividade na formação. E o convite:
“Então, colegas, quereis falar? Perguntar?”
E o diálogo corria solto e formativo. O pai Michael até propôs um exercício de “olhos fechados”, com recurso ao “ChatGPT”. Agostinho da Silva foi por ele estudado:
“Agostinho renunciou a bens materiais e incitou ao uso livre da liberdade. Fui à biblioteca da Carreira. Pesquisei. Não encontrei um livro sequer sobre Agostinho. Na Internet, assisti a um filme sobre ele. Entendi o porquê da Festa do Espírito Santo. Agostinho fez-me viajar.”
E, mais adiante:
“Os professores têm falta de poder. Se as crianças aprendessem com liberdade construiriam um mundo gratuito onde não haveria crime. Fui guarda nacional republicano. Quando li Agostinho, me arrepiei. Não tenho apresentação para vos mostrar. Falo com o coração. Alguém quer falar? Partilhar?”
(continua)
Por: José Pacheco
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