Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIX)

Manaus, 15 de novembro de 2043

Numa velha rede social dos anos vinte, o meu amigo Celso publicou versos de um poeta recentemente falecido. Foram escritos por Thiago de Mello, na parede da cela de uma prisão do tempo da ditadura:

“Faz escuro, mas eu canto / porque a manhã vai chegar / Vem ver comigo, companheiro / a cor do mundo mudar.

Vale a pena não dormir para esperar / a cor do mundo mudar.

Já é madrugada / vem o sol, quero alegria / que é para esquecer o que eu sofria.

Quem sofre fica acordado / defendendo o coração / Vamos juntos, multidão / trabalhar pela alegria / amanhã é um novo dia.”

Tinham decorrido mais de quarenta anos, quando, num fim de tarde brasileiro, reparti com o autor do poema uma mesa de congresso. 

As palavras daquele homem todo vestido de branco fizeram com que eu regressasse aos idos de sessenta, quando, num escuso recanto de uma livraria “alternativa” (de oposição à ditadura de Salazar), encontrei um poster com “‘Os Estatutos do Homem’. 

Pendurei-o no meu quarto de dormir. Para ele olhava, todas manhãs, durante cerca de dez anos, até que o papel amareleceu e já quase era possível ler os “Estatutos”. Também já não precisava. Tinha decorado o texto. Em momentos críticos, ele saía de mim para a prática quotidiana. 

Quando, no Brasil, se esboçava o espectro da ditadura, em Portugal já sopravam ventos de liberdade. E o poema do Thiago me acompanhava em todos os lugares onde eu ia e onde uma autora de liberdade, de dignidade, emergia de quase meio século de podres poderes.

Em 2004, meio século após o início da ditadura e da escrita dos “Estatutos”, Thiago de Melo publicava o seu último livro de poemas. Á beira do rio Andirá, na floresta, onde quis viver e morrer, ainda preparava dois livros de prosa, porque, há muito tempo já, avisara:

“Não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar”

Nesse mesmo ano, estava implícita na “carta de princípios” dos Românticos Conspiradores uma ideia de comunidade, de aprendizagem compartilhada, de práticas colaborativas. Muitos núcleos de prática surgiram. Estou a lembrar-me, por exemplo, do núcleo “Quero-Quero” do Rio Grande do Sul, onde a “docência compartilhada” era prática diária. Os RC recriavam espaços de vida em comum e o segundo dos princípios dos RC – “Educar-se em Solidariedade” – era disso evidência: 

“A educação é um processo relacional, possuindo um caráter social que deve ser assumido nas práticas educativas. 

A solidariedade, mais do que um objetivo ético a ser atingido, é uma condição primordial para a realização do trabalho educativo. Portanto, este só se desenvolverá plenamente, se considerar e incluir as diversas relações entre todos os atores envolvidos: educandos, educadores, gestores, famílias e comunidades. 

No caso da escola, é indispensável que abra suas portas à comunidade, a fim de constituir-se em polo integrador e irradiador do saber e do esforço social pela educação.”

Em 2023, os Românticos Conspiradores organizavam o seu décimo segundo encontro nacional. E continuavam animados do espírito dos Estatutos “decretados” pelo poeta Thiago: 

“Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento.

O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente, como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.”

 

Por: José Pacheco

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