Rio do Ouro, 26 de novembro de 2043
Aquele “dejá vu” formativo de vinte e três nos mostrava que ainda não chegara um tempo propício à reflexão fecunda.
Tal como nos idos de setenta, no tempo em que eu ainda acreditava poder aprender algo nos cursos que, então, o ministério disponibilizava.
Algo bizarro acontecia. Os formadores desciam da universidade (ou subiam?) ao submundo do ensino básico. Com o apoio de retroprojetor (não havia computadores), projetavam “acetatos” com as mesmas citações, que, na década de vinte, voltaríamos a ler no power point das palestras e formações.
Nos idos de vinte (deste século!), ainda não ficara para trás um tempo de congressos feitos de saliva e power point. Entre o uso do retroprojetor e o do computador, eu assistira a monótonas ou espetaculares palestras, nas quais os palestrantes citavam teóricos, reciclando lengalengas do discurso das ciências da educação.
Conheci dadores de aula, que não conseguindo fazer, na prática, aquilo que a teoria recomendava, desistiram do chão de escola. Fizeram doutoramento, conseguiram emprego na universidade. Fabricaram power point feitos de citações e venderam palestras e ações de formação, nas quais ensinaram os formandos a fazer aquilo que eles próprios não tinham conseguido fazer.
Em 2023, eu escutei uma live, na qual uma doutorada em Vygotsky repetia as mesmas citações de uma palestra que eu a ouvira dar cinquenta anos antes. Com uma agravante: a doutora nunca pusera em prática o Vygotsky de que dizia ser “especialista”.
Com perplexidade, assistia a “lives” feitas de power point e saliva, nas quais pedagógicos eruditos (que ainda davam aula) dissertavam sobre “protagonismo discente” e outros assuntos idênticos aos de cinquenta anos atrás, mas com nova roupagem.
Entre o espanto e a indignação, via-os lendo teoria requentada, como se os ouvintes fossem analfabetos e não soubessem ler frases projetadas numa tela. Com surpresa e desgosto, via-os ser aplaudidos pelos formandos e elogiados pelos seus pares.
Escandalizado, eu assistia ao degradante espetáculo da venda de “planos de aula”. Na Internet, era frequente encontrar disparates como este anúncio:
“Você já conseguiu identificar quais habilidades precisam de um reforço neste ano letivo?
Pensando em facilitar essa tarefa, para você que quer finalizar 2023 dando check nas habilidades que ainda precisam ser melhor exploradas com seus alunos, são mais de 4.000 Planos de Aula, do 1º ao 9º.
Encontre o plano de aula perfeito para o tema que deseja, para transformar sua didática em sala de aula.”
“Em sala de aula”!… em pleno século XXI?
Havia uma explicação para o que parecia paradoxal. Os formadores não sabiam, mas a formação era isomórfica: o modo como o professor aprendia era o modo como o futuro professor ensinaria. Se não, reparai…
O engenheiro completava o seu curso e fazia estágio. O médico completava o seu curso e fazia estágio. Algo diferente acontecia com os candidatos a professor. Começavam o estágio, antes de fazer o curso de pedagogia. Ao cabo de doze anos de estágio feito em sala de aula, seguiam-se quatro anos de curso de formação inicial, em sala de aula. E novo estágio, em sala de aula.
Quando, numa instituição de formação inicial, coordenava estágios, escutava enormidades deste jaez:
“No estágio, somos obrigadas a seguir os planos à risca. A maior parte dos alunos não consegue acompanhar. Mas, se nós demorámos mais um bocado com um ou outro aluno, a professora dizia logo: “Minha senhora, já está atrasada cinco minutos. Olhe para o plano! Já deveria ir no exercício de aplicação.”
Por: José Pacheco
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