Tijuca, 27 de novembro de 2043
Queridos netos, achastes “exagerada”, “virulenta” a crítica lavrada na cartinha de ontem. Carinhosamente, dissestes ser o vosso avô um “velhinho insuportável”. Pois ficai sabendo que não “exagerei”, que pequei por defeito. E, hoje, apetece-me ser ainda mais insuportável.
Há vinte ou trinta anos, havia tabus e interditos, que ninguém ousava interpelar. Quando, nos idos de oitenta, o vosso avô se lançou na escrita de uma dissertação, desocultou alguns “dogmatismos”, que sustentavam uma precária formação de professores.
Acompanhei o percurso académico de muitos jovens candidatos a professor. Todos passaram por licenciaturas em química, filosofia, engenharia, matemática e outras disciplinas. No final dos cursos, eram exímios no domínio da “matéria a lecionar”, mas as ciências da educação eram para eles ciências ocultas.
Em Portugal, chamavam-lhes “setores”. Na hierarquia académica, ocupavam o patamar de licenciado. Não eram doutorados, mas exigiam que os seus alunos lhes chamassem “setôr”, abreviatura de “doutor”. Eram dadores de aula. Estavam professores, não eram professores. E não sabiam que não o eram.
Quando fui trabalhar no “ensino superior”, não me afastei do “inferior”. Os meus colegas – formadores de jovens candidatos a professores – avisavam-me que eu iria ter mais trabalho do que aquele que tinha na Ponte, mais dificuldades a “dar aula”. Estavam enganados. Na universidade, nunca precisei de planejar aula (até porque já não “dava aula”, há mais de vinte anos).
Aqueles jovens, desprovidos dos mais elementares conhecimentos de ciências de educação, ansiavam por obter um diploma. Por isso, se submetiam à imposição de horário-padrão e à clausura da sala de aula (com obrigatoriedade de assinatura em “lista de presença”).
Os seus professores não ensinavam aquilo que diziam. Eles transmitiam aquilo que eram, veiculavam competências de que estavam investidos. Eram pedagogicamente eruditos, autores de teses escolanovistas, arautos do pedocentrismo, mas continuavam mais magistrocêntricos do que o Coménius –~ no século XVII, esse bispo já falava de pedocentrismo.
Nessa instituição de formação, escutei desabafos de “professoras primárias” forçadas a fazer um complemento de formação, para ficarem equiparadas a licenciadas:
“Olha, Zé, todos os dias, faço três horas de estrada, para vir ouvir uns doutores a falar de “paradigmas emergentes” e outras coisas que para nada nos servem.”
Escutava-as com profunda compreensão e até ternura. No final de uma carreira de trinta e mais anos de chão de escola, aquelas mulheres sabiam mais do ato de ensinar do que os formadores. Mas, eram obrigadas a colocar num teste o Thomas Khun e a “Estrutura das Revoluções Científicas”, embora isso nada acrescentasse ao seu saber-fazer.
Nos idos de setenta e de noventa, como nos anos vinte (deste século!) a formação ia de mal a pior. À míngua de uma sólida e coerente formação, muitos professores se refugiavam na segurança do que melhor dominavam. Replicavam aulas em sala de aula, permaneciam cativos de um obsoleto modelo de formação cartesiano.
Ainda havia quem ignorasse a existência do princípio do isomorfismo, quem acreditasse que a teoria precedia a prática, quem considerasse o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação. Nos idos de vinte, prevaleciam práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, feitas de competitividade negativa, das quais estava ausente o trabalho em equipe.
Por: José Pacheco
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