Humaitá, 2 de novembro de 2043
O prometido é devido e cá estou eu a falar-vos de tabus e interditos dos idos de vinte. Felizmente, já lá vai o tempo em que o desconhecimento de realidades de chão de escola pública dava origem a equívocos, como o de um reitor que, num jornal de grande tiragem, se queixava de dificuldades de ordem financeira.
“Não sei se, amanhã, teremos sequer dinheiro para comprar papel higiénico”.
Nesse tempo, não havia computadores, pelo que lhe enviei uma carta, de que transcrevo um excerto:
“Senhor Reitor, imagino que seja bem difícil controlar o consumo do ar condicionado. Sorte nossa, que não o temos e, por isso, não temos de gerir dinheiro que não recebemos para esse efeito. Nos dias de maior calor, levamos as crianças para debaixo das árvores, como recomendava o bispo Coménius.
Certamente, fará imensos cálculos, terá muito trabalho na gestão da verba destinada ao funcionamento do refeitório da sua universidade. A nossa escola não tem cantina, pelo que somos uns privilegiados. Quem se encarrega de matar a fome dos nossos alunos é a Divina Providência e o queijo da Cáritas.
Soubemos, há pouco, que o Estado inaugurou uma cantina na sede do município. E que a criançada escreveu redações como esta, que aqui deixo:
“Gostei tanto de ir hoje à escola, minha mãe! A senhora professora estava muito contente, porque inaugurou uma cantina, onde os meninos pobres podem almoçar de graça.
As mesas muito asseadas, os pratos branquinhos, jarras floridas e tudo tão alegre!
A sopa cheirava que era um regalo. Todos estávamos satisfeitos ao ver os pobrezinhos matar a fome”.
O ministério talvez parta do princípio de que as nossas crianças não têm estômago. Mas, mesmo sem cantina, ajudaremos o Senhor Reitor, seremos solidários com quem as tem.
Fique tranquilo. Não precisará de se preocupar com a compra de papel higiénico. Achamos uma solução. Habituaremos as crianças a não comer. De modo que, quando chegarem ao ensino “superior”, não precisarão de defecar”.
De então par cá, cantinas foram edificadas nas escolas do ensino “inferior” e até ar condicionado foi instalado nos caixotes de betão a que chamavam escolas. Porém, no quadro de um sistema hierárquico, outras desigualdades foram “naturalizadas” e ignoradas. Por exemplo (e porque estamos a falar de porcarias), havia hierarquia até no defecar e urinar.
Por que razão, nas escolas, se mantinha banheiros de alunos separados de banheiros de professores – nos lares, haveria banheiro de pai separado de banheiro de filho?
Quando visitava escolas, observava que o banheiro do aluno não tinha tampa no vaso, nem papel higiénico. O do professor já tinha tampa e papel e até espelho. O banheiro da direção tinha isso tudo e até ar-condicionado.
Encontrei a foto, que junto a esta cartinha, numa escola…bilingue. Desde a década de sessenta, encontrei idênticos e apelativos dísticos, em escolas, repartições públicas, universidades e até no ministério da educação. Na “Preparação para a Cidadania”, a escola da sala de aula nem sequer ensinava a usar uma sanita.
Um decreto de 1984 transferiu para os municípios competências em matéria de ação social escolar, nomeadamente a gestão de refeitórios. Consequência: as raras cantinas existentes foram extintas e os seus bens, legados e doações passaram a património dos municípios. Uma gestão caduca retirava às escolas até a capacidade de gerir cantinas, mais um anátema de menoridade, que as escolas acataram “a bem da nação”.
Em 2043, talvez seja difícil imaginar que tais situações pudessem ter ocorrido. Mas, outros absurdos vos contarei.
Por: José Pacheco
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