Tavira, 4 de janeiro de 2044
A velha história é contada assim:
“Aquele barco a remos fazia a travessia de um rio. Num dos remos, tinha escrita a palavra acreditar; no outro, a palavra agir.
O barqueiro explicou porquê. Usou o remo, no qual estava escrito acreditar, e o barco começou a dar voltas, sem sair do mesmo lugar. Depois, usou o remo em que estava escrito agir e o barco girou em sentido oposto, sem ir adiante. Quando usou os dois remos, num mesmo movimento, o barco navegou até à outra margem. Não “remou contra a maré” ou ao “sabor da corrente”. Uniu duas margens pelo impulso da escolha que lhe imprimiu um rumo coerente.”
No Brasil do início de século, reaprendi a acreditar e a agir. Com novos companheiros de projeto, reaprendi a lealdade a valores e a princípios. Por mais de cinquenta anos, educadoras e os educadores haviam despendido muitas horas em constantes brigas burocráticas, desgastado a paciência em frequentes choques com o preconceitos e fundamentalismos, nunca beneficiando de elogio ou de financiamento, porque empresas abútricas e fundações só patrocinavam pseudo-inovações.
Como já vos disse – mas valerá a pena relembrar, porque a memória dos fatos foi, por vezes, deturpada – os Românticos Conspiradores estiveram na origem da CONANE, do Terceiro Manifesto, do Projeto Âncora, do movimento Educação Humanizada e de muitas outras iniciativas a que se poderia chamar “inovadoras”. O ano de 2024 faria de muitos excelentes professores “agentes de transformação”. Juntar-se-iam ao que restava dos RC. Porém, dessa vez, organizados.
Assim como havia dito ao amigo Rubem que não bastava ser romântico, que seria preciso ser conspirador, em 2024, chamava a atenção para a necessidade de organização. Para atingirmos o objetivo de a todos garantir o direito à Educação, seria necessário ir além do espontaneísmo de iniciativas nobres, mas pontuais, de projetos isolados e facilmente destruídos pela ignorância e maldade humanas.
Com os Mapuche chilenos, e nos quilombos e comunidades indígenas do Brasil, o vosso avô havia questionado o seu etnocentrismo europeu. Em vinte anos, tinha-se transformado numa espécie de “anti cabralista” educacional. E partilhava as ideias do amigo Walter Steurer:
“Nossos índios detêm a sabedoria capaz de nos salvar com o planeta, são capazes de viver em liberdade, tirando da Terra somente o necessário, com uma organização social que não conhece a corrupção, onde o enriquecimento não faz parte das aspirações pessoais, onde o bem-estar coletivo está acima de tudo.”
Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade de quem é honesto, fiel a compromissos. Mas, nos idos de vinte, ainda havia formadores que escreviam uma coisa e diziam outra. Ou que diziam ser o aluno o centro, enquanto davam aula centrada no professor. Como sempre acontece nas relações humanas, os jovens estavam atentos ao exemplo de vida dados pelos adultos. Se, na prática, não fossemos leais a valores e a princípios, daríamos aos jovens um péssimo exemplo, abrindo espaço para desenvolvimento de contravalores.
Nunca tentei convencer quem quer que fosse, quem pensasse ou agisse de um modo que eu considerava antiético. Mas, não poderia continuar a calar uma velha pergunta dirigida aos dadores de aula:
Se, do modo como vós “dais aula”, excluís muitos alunos, privando-os do direito à educação, por que continuais trabalhando desse modo? Por que condenais à ignorância tantos seres humanos?
Netos queridos, sabereis dizer-me por que razão ainda havia, nos idos de vinte, gente que não assumia um compromisso ético com a Educação?
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