Arraial da Ajuda, 17 de janeiro de 2044
Há uns vinte anos, por esta altura, Caraíva acolhia educadores provindos de lugares vários do território brasileiro. Tinham em comum valores e princípios. Tinham por principal objetivo partilhar experiências, pois a a crise ética, que se instalara no sistema educacional era, também, tempo de oportunidades.
Em dois mil e vinte e quatro, estava a ser gestada uma nova educação, aquela que os filhos dos filhos dos vossos filhos mereciam. A compaixão e a esperança nunca esmoreceram. A freiriana esperança nunca morreria. Apesar dos desmandos da desgovernação, havia quem praticasse Darcy.
As secretarias de educação diziam ter como missão proporcionar uma educação pública, gratuita e democrática, voltada à formação integral do ser humano, para que pudesse atuar como agente de construção científica, cultural e política da sociedade, assegurando a universalização do acesso à escola e da permanência com êxito no decorrer do percurso escolar de todos os estudantes. No domínio das intenções, era essa a missão.
Na prática, poucas secretarias as cumpriam. A “qualidade da escola pública” não melhorava. O amigo Pedro analisara resultados traduzidos num mísero. IDEB. Desse estudo se poderia concluir que a manutenção de um sistema de ensinagem com centro no professor e na solidão da sala de aula, para além de outros males, era indício de crime de abandono intelectual.
Muitos educadores se surpreendiam, quando eu lhes dizia que o sistema de ensinagem, para além de obsoleto, era criminoso. Pareciam possuídos por uma estranha cegueira, que os impedia de ver que, insistindo em “dar aula” se negava o direito à educação, e que isso configurava crime de “abandono intelectual”.
A lista de imoralidades cometidas por esse sistema era bem longa, poupar-vos-ei à descrição. Mas, certo é que me entristecia por ver educadores éticos em “rotas de fuga”, fabricando “paraísos pedagógicos artificiais” sustentados pela boa-vontade de filantropos, por “bolsas de alunos pobres” da caridadezinha assistencialista, ou por quem podia pagar uma “mensalidade”.
Cadê a solidariedade inscrita nos projetos das escolas? Projetos ditos “alternativos”, que se submetessem às ímpias regras de um sistema de ensinagem hierárquico, autoritário, imoral e corrupto, jamais lograriam sobreviver sem negar os seus princípios. Urgia passar de um obsoleto (e criminoso) sistema de ensinagem para um sistema de aprendizagem, conceber uma nova construção social.
Já nas décadas de trinta e de quarenta (do século passado, claro!), Anísio nos falava dessa nova construção social. Urgia partir do trabalho em salas de aula, para acabar com elas, incrementar a pesquisa nas bibliotecas e casas de cultura, na Natureza. Dever-se-ia banir segmentações cartesianas e castas, como a de um ensino “superior” (não consta que houvesse um ensino “inferior”). Urgia reorganizar o tempo e o espaço escolar, garantindo integralidade, o ritmo de aprendizagem de cada ser humano e da sua comunidade, o respeito por princípios, escutando Anísio Teixeira:
”Fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisem andar muito para alcançá-las. “O território não se limita ao espaço geográfico, mas a abrangência dos efeitos sociais e políticos em que o indivíduo esteja inserido. O estudante não é só da professora ou da escola, e sim da rede, da Cidade”.
Nesse tempo, onde se fazia a Escola Pública proposta por Anísio Teixeira?
Por que o assassinaram?
Porque continuávamos cúmplices do assassinato da sua memória?
Por: José Pacheco
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