Vitória da Conquista, 28 de janeiro de 2044
Abalamos de Belo Horizonte para Vitória da Conquista, ao encontro do amigo António. Na bagagem, a expectativa de ajudar a compor uma ARCA do Sul da Bahia e alguns textos dispersos recuperados do caos em que o meu velho computador estava imerso.
Eram apontamentos marginais de páginas relidas, há mais de meio século, misturados com pedaços de mensagens da Internet de há vinte anos. Sem preocupação de uma sequência lógica, aqui vo-los deixo.
O primeiro me chegou pelos idos de oitenta, oferta do amigo Miguel:
“A escola é o lugar onde deveríamos aprender a ser nós próprios e a respeitar todos os outros. Estar na escola, viver a escola deverá ser o caminho para chegar a conhecer, a amar e a desenvolver a nossa pessoa e, ao mesmo tempo, a ter em conta que há outras que merecem o nosso respeito, a nossa ajuda e o nosso afeto.
Quando falo de diversidade, não me refiro só aos alunos, há diferenças que devemos respeitar nos professores e em todos os que trabalham na escola.”
E continuava citando Steiner – referência maior da Vovó Ludi – que dizia ser a relação professor-aluno “uma alegoria do amor desinteressado.”
Quando eram colocados obstáculos à expressão concreta da máxima steineriana, Crozier ensaiava uma ou outra explicação:
“Identifico três problemas fundamentais. O primeiro releva da psicologia. O segundo tem a ver como relacional. O terceiro inscreve-se no campo dos saberes, onde a escola privilegia mais os conhecimentos do que o saber-fazer.
No plano psicológico, num mundo caracterizado pela liberdade infinita das escolhas possíveis, choca-me a incapacidade de as crianças escolherem. Os pequenos permanecem marcados por uma educação “dominação/revolta”. O mestre fala, o aluno escuta, não podendo tomar a palavra a não ser nos modos eruptivo ou revoltado.
A escola é o reino da submissão e da não-escolha. Para além disso, é terrivelmente ansiogénea, uma vez que toda a marcha atrás é difícil.
Que se entende por problema “relacional”? A necessidade de uma abertura, de uma disposição de espírito que não existe. Os trabalhos de amanhã lhe atribuirão uma grande importância. Um esforço considerável deve ser empreendido para dar às crianças o gosto de se dirigirem aos outros e estabelecerem o laço social.
E chegamos à terceira dificuldade: a questão dos conteúdos e dos saberes.
Há alguns anos fui convidado por Luc Ferry para refletir sobre os programas escolares. Devíamos aligeirá-los e acabamos por sobrecarregá-los. Que fazer, então?
É preciso dar aos professores instrumentos de reflexão e deixá-los trabalhar sobre os problemas e os constrangimentos que se lhes colocam. Querem fazer-nos acreditar que na educação nacional apenas o ministro pensa. As mudanças não se decretam.”
A escola dos idos de vinte detinha importante função social, e o desenvolvimento de competências sociais deveria andar a par do compromisso com a construção de relações solidárias, humanizadoras. Mas, vai sendo tempo de concluir esta “manta de retalhos”, que espero venha a ser objeto da vossa reflexão. Fá-lo-ei com um recado do Paulo:
“É preciso contrariar o apagamento das memórias, das razões e das convicções, do direito de resposta à liberalização da infelicidade e à globalização da rapacidade.”
A que junto algumas perguntas deixadas pelo Miguel:
“Deveremos sentir-nos como somos, ou encaixarmo-nos numa engrenagem de rotinas despersonalizadoras? A obedecer de forma aborrecida àquele que prescreve, nas palavras de Helmutt Becker, a “escola administrada”, ou a recriar o conhecimento e a convivência?”
Por: José Pacheco
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