Algures, em 2 de fevereiro de 2044
“Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano:
Devo atrair a sua atenção para uma qualidade intrínseca dessa cidade, um amor latente pela justiça, ainda não submetido a regras, capaz de compor uma cidade ainda mais justa do que era antes de se tornar recipiente de injustiça.“
No seu livro “As Cidades Invisíveis”, Calvino fala-nos de injustiça e do seu reverso. A minha amiga Teresa tinha-me oferecido um exemplar dessa obra e eu recomendava a sua leitura, para que os leitores pudessem compreender como a injustiça tinha rédea solta no sistema hierárquico e autoritário dos idos de vinte.
Nesse ignominioso tempo, era comum a instauração de inquisitoriais processos contra qualquer educador que ousasse tentar… cumprir a lei. À semelhança de outros educadores, a Fabi desenvolvia um projeto perfeitamente enquadrado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Porém, os burocratas das diretorias, secretarias e órgãos quejandos usavam uma lei do tempo da Ditadura, para destruir esse e outros projetos.
À luz das ciências da educação e da Lei de Bases de noventa e seis, o libelo acusatório era um chorrilho de disparates. Acusavam a Fabi de se ter manifestado de forma depreciativa em relação aos projetos e demandas da Secretaria de Estado da Educação” e de ter autorizado a realização do projeto “Tutoria em Ação”.
Pois a Fabi só poderia manifestar-se de forma crítica, “depreciativa”, em relação à inutilidade dos projetos e ao sem sentido das demandas da Secretaria de Educação”. A realização do projeto “Tutoria em Ação” não carecia de autorização de “superiores hierárquicos”, pois estava fundamentado na lei e nas ciências da educação, ciência ocultas para os burocratas das secretarias.
A “Tutoria em Ação” era uma práxis consistente. Se a Fabi, formalmente, “pedisse autorização”, para desenvolver o projeto, apresentando-o à consideração a suas excelências da Diretoria, estas não o entenderiam e, provavelmente, o rejeitariam. No tempo em que a Educação ainda estava nas mãos de gente autoritária, era arriscado exercer a profissão de professor com dignidade.
Exercer liberdade de expressão consistia no direito de expressar opiniões, ideias, sem interferência ou censura governamental. Em democracias avançadas, o direito de se expressar fora alçado ao status de fundamental. A “Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos declarava que não se faria nenhuma lei “restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa”. Essa proteção abrangia uma ampla gama de formas de expressão, incluindo a fala, a imprensa, a liberdade acadêmica.
O libelo acusatório acrescentava um conjunto de alegações que qualquer advogado desprovido de conhecimento pedagógico e científico julgaria pertinentes. Mas, não passavam insinuações escritas num tempo verbal (o condicional presente), não se tratando, evidentemente, de acusações provadas, à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e da Constituição, que, no seu artigo 5º, incisos IV e IX, a Lei estabelecia:
“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”
E eu perguntava:
Iríamos consentir que, em democracia, a Fabi fosse “DEMITIDA” (era essa demanda da Diretoria, em letras maiúsculas), com base numa lei do tempo da Ditadura?
Por: José Pacheco
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