Braga, 16 de fevereiro de 2044
A cidadania é uma “técnica de vida” a aprender como quaisquer outras. Por essa razão, o nosso Faria de Vasconcelos (já em 1915 e muito antes de Rogers!) defendia que a educação se deveria fazer de dentro para fora, pela experiência e pela prática gradual do sentido crítico e da liberdade.
Ellen Key, vinte anos antes de Summerhill, prefigurou a realidade dessa experiência, ao afirmar que os pais e a escola afogavam a individualidade da criança e que seria necessário que o professor a libertasse dessas amarras.
Se considerarmos a experiência dos libertários de Hamburgo como um malogro, é em Neill que encontramos os limites da liberdade possível. Diria mesmo que, sem a sua radicalidade, se perderia uma importante referência.
Os movimentos que se seguiram à Educação Nova têm em Summerhill um primeiro ensaio de aplicação psicanalítica. Neill foi profundamente influenciado por Freud e Reich. Promoveu uma rutura profunda com os teóricos do seu tempo (incluindo os da Escola Nova), ainda que reatualizasse algumas propostas de Rosseau.
É por essa razão que situo Neill numa fase transitória, marcada pela recusa da especulação teórica (é contra essa especulação que Freinet também reage). Neill acreditava na eficácia da regulação pelo desejo. Criou um ambiente de aceitação. sem ameaças nem medos, para que a criança pudesse exprimir-se e aprender a gostar de si própria.
Mais do que renunciar à prescrição, o adulto-educador renunciava ao julgamento. Ao adulto competia, segundo Neill, criar condições em que o desejo pudesse cumprir-se:
“Em Summerhill, acredito termos provado que a autonomia funciona. E uma escola não faz concessões. Não podemos ter liberdade a não ser que as crianças se sintam livres para governar a sua própria vida social.
Quando há um patrão, não há liberdade real. Isso aplica-se ainda mais aos chefes benévolos do que aos disciplinadores. A criança de espírito pode rebelar-se contra o chefe áspero, mas o chefe que usa de brandura apenas faz a criança sentir-se frouxa, e insegura quanto aos seus sentimentos reais”.
Realmente, a escola sem autonomia não deveria ser chamada escola progressista, no sentido que Snyders lhe conferia. Ao educador competiria representar um “princípio de realidade” não repressivo, cujas necessidades seriam reconhecidas e assumidas com as próprias crianças. Neill era considerado adepto de uma liberdade sem limites, mas ele próprio reconhecia não haver liberdade absoluta. Como alguém disse, “criança não faz o quer; criança quer o que faz”.
Esse mestre reage contra a coercividade da educação inglesa, mas não vai ao ponto de rejeitar toda e qualquer disciplina, que considera como desinteresse do professor em relação à evolução do aluno.
O que importa sublinhar neste autor é a sua convicção de que a conceção tradicional de disciplina não pode conduzir a criança à autonomia:
“A autonomia é a conduta inspirada pelo eu, e não por uma força exterior.”
Neill considerava que a criança não deveria ser forçada a fazer algo, antes de ter reconhecido que o deveria fazer. Restava saber se esse reconhecimento se operava por manifestação do desejo. E a resposta não era simples. Neill ainda a adensava, quando, ao esbater o dilema autoridade / não-autoridade referia que o que se fazia à criança não era importante, mas sim o modo como se fazia – mais uma vez nos antípodas de Snyders.
Se tiverdes paciência suficiente para aturar este vosso avô, contar-vos-ei estórias do Neill, do Snyders e de outros educadores do século XX, cuja obra, mesmo para os leigos, importa conhecer.
Por: José Pacheco
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