Esmoriz, 21 de fevereiro de 2044
Como vos disse, o textinho que escrevera sobre autonomia, há meio século, mantinha atualidade. Por que seria?
Uma das causas da “atualidade” desse textinho era a pérfida ação de “doutores em educação” saídos das catacumbas da pedagogia do século XIX, venerando Gagné, Skinner e quejandos. A ação de áulicos universitários afetados pelo teoricismo – a doença infantil da pedagogia – conferiam ao textinho atualidade e contribuíam para perenizar a tragédia instrucionista.
Espero que não vos canse regressarmos à leitura daquilo que redigi sobre o conceito de autonomia e a sua expressão praxeológica. É de prática que vos falo, não de teorização de teorias teorizadas. Faço-o porque os Gagnés dos idos de sesenta tinham todo o direito de “duvidar” da possibilidade de assunção de uma autonomia responsável, mas poderíamos admitir que a aprendizagem poderia ser reduzida a uma resposta a estímulos externos ao sujeito de aprendizagem?
Só porque escasseava a caução das práticas (ditas) alternativas, teóricos como Gagné “raramente duvidavam”. Mas o discurso teórico instrucionista poderia cair em contradição, se confrontado com algumas inelutáveis práticas participadas pelo vosso avô. Humildemente, contrapus o argumento de uma práxis dos anos setenta, num textinho intitulado “Uma utopia realizável?” Ei-lo:
“As propostas de Gagné, como as de tantos outros teóricos militantes, orientam a aprendizagem para o domínio da criação de situações de ensino em que ao professor cabe apresentar estímulos, dirigir a atenção do aluno, fornecer modelos, orientar “a direção do pensamento”, e ao aluno um papel passivo.
A tecnologia educativa projeta-se em artefactos que visam a “função geral de fornecer imputs à pessoa que aprende”, afirma Gagné. Não declino o importante papel da repetição, da memória e do esforço, mas uma criança aprendiz poderá ser metaforicamente comparado a um rato aprendiz que, por tentativas, constrói o seu mapa cognitivo?”
Netos queridos, como vos disse na cartinha anterior, nos idos de vinte, a farsa instrucionista estava bem montada e generosamente financiada por empresas e fundações. Alastrava a praga das start-up educacionais consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, que apenas visavam lucro, explorando a ignorância e a ingenuidade pedagógica.
Consultei a lista de palestrantes de “lives” promovidas por abútricas empresas. A curiosidade me levou à consulta do currículum vitae de improvisados e falsos “especialistas” em educação. Eram especialistas em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças, Varejo e Serviços, Ciências do Consumo Aplicadas, Educação Executiva…
No distante 2024, os “híbridos” seduziam a administração educacional e secretarias de educação compravam “gato por lebre”. Numa economia de mercado, o direito à educação estava transformado numa mercadoria.
A escolha das condições para a aprendizagem determinava, decisivamente, o tipo de modificações que se operavam. Nos idos de vinte, alunos transformados em “monstrinhos de tela”, consumiam currículo prescrito, como cobaias de laboratórios “alternativos”, ou “ratinhos de laboratório” de aprendizes de feiticeiro. Burocratas usurpavam espaços de reflexão e prática, onde deveria prevalecer o bom senso e uma ciência prudente.
Iríamos esperar mais um século pela erradicação da escola da sala de aula?
Por: José Pacheco
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