Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXXIX

Rebordões, 15 de março de 2044

“Era uma vez, um reino encantado e junto ao mar. Encantado, porque uma fada má transformara todos os seus habitantes em pássaros. Junto ao mar, porque convém ao enredo da história. No reino encantado, havia cidades e, para além dos muros das cidades, outras cidades e outras escolas. 

As escolas de aprender a voar eram quase todas iguais entre si. E iguais a essas eram outras escolas dentro das cidades das aves. As avezinhas aprendizes eram todas diferentes umas das outras. 

Havia o rouxinol e o seu maravilhoso trinado; havia a calhandrinha e o seu canto monótono. Ia à escola o melro saltitante e o beija-flor de voo gracioso. Mas o manual de canto era igual para todos, o manual de voo era igual para todos.

Ensinava-se o piar discreto e em coro. Praticava-se o voo curto, de ramo para ramo. Havia o manual para as aulas de piação. Nas aulas dadas pelo manual, os papagaios treinavam os seus pupilos no decorar melopeias sem sentido. Todos ao mesmo tempo, no mesmo ramo, na cadência imposta pela batuta do papagaio instrutor.” 

Metaforicmente, assim descrevi aos meus netos a Escola do início dos anos setenta e que, mais computador menos pau de giz, se replicava no final de década de vinte – a Escola do século XIX, em pleno século XXI. 

Creio ter detetado uma das causas desse desajuste. Durante o século XX, académicos ociosos teorizaram teorizações de teorias. E a praga teoricista se prolongou, adentrou o século XXI, sofisticando um discurso  que contratava com a miséria das suas práticas. 

Era fácil a tarefa de identificar teoricistas. Pavoneavam-se nos palcos dos congressos, acariciando egos de professores, publicavam teses sobre o paradigma da aprendizagem (e até sobre o da comunicação), sem, contudo, lograrem emancipar-se do rame-rame das suas salas de aula instrucionistas. 

Escutei-os dizendo:

“Tenho visto equipamentos escolares lindos e com todas as condições dignas para professores e alunos poderem usufruir.”

Confundia-se escola com prédio, considerava-se “condição digna” a existência de salas de aula do século XX instaladas em “equipamentos escolares lindos” do século XXI, “fruindo” uma pedagogia do século XIX.

Vai para vinte anos, alguém que eu muito admirava também sofreu um ataque de puxa-saquismo: 

“Sempre achei bastante injusto (até mesmo um pouco demagógico) dizer que as nossas escolas são “do século XIX”. Acho que quem emprega esta “frase de efeito” não entra há muito tempo numa escola ou então não sabe o que eram as escolas no século XIX.

Estou a fazer um tempo de visitas aprofundadas a agrupamentos de escolas em Portugal (de Norte a Sul) e hoje quero celebrar o esforço de tantos professores, de tantos profissionais que fazem o melhor para que a escola seja digna do século XXI.”

Quando isto li, por pouco não vomitei. O “demagógico” discurso vinha de quem “visitava” escolas, um discurso legitimador do “esforço” de professores, “que faziam o melhor”. 

Uma professora se lamentava:

“Sabe o que me preocupa? É imaginar que os meus alunos são meus filhos e que não lhes posso dar tudo o que eles precisam e merecem”.

Numa tomada de consciência inconsequente, aquela professora confessava que, em sala de aula, não conseguia garantir a todos os alunos o sagrado direito à Educação. Mas, um teoricista não conseguiria ajudá-la, responder ao apelo, porque apenas exibia “frases de efeito” e não entrava nas escolas – apenas as “visitava”.

Por que não se interpelava tabus teoricistas? Por que não se exigia que fundamentassem a existência de sala de aula nas escolas do século XXI? 

Pedi ao Mestre Pedro que o fizesse.

 

Por: José Pacheco

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