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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DIV)

Monção, 18 de abril de 2041

Retomemos a missiva da Mercedes:

E veio outro “não”: “Vocês não vão fazer isso desse jeito. O acolhimento será feito apenas pelos professores regentes. E ninguém pode entrar em contato, antes do carnaval!”. Voltei a perguntar: Por quê? Porque o ano letivo está a terminar.” Naquele momento, pensei: e eu sou o quê? O que faz de mim menos professora?”

Ao ler a missiva da Mercedes, recordei um episódio do tempo em que havia “super” cargos na hierarquia burocrática. Uma “supervisora” me interpelou:

“Nas escolas “normais”, as férias escolares já começaram há uma semana. Por que é que estas crianças ainda estão na escola?”

Respeitosamente, respondi. Pacientemente, repeti o que havia dito a inspetores, diretores, supervisores e outros funcionários de escolas instrucionistas. Ironicamente, rematei e expliquei:

“Por que há férias escolares? Os hospitais fazem férias? As igrejas fazem férias? “As escolas “normais” presumem que a inteligência das crianças deixa de funcionar em dezembro, para voltar a funcionar depois do Carnaval. Aqui, a inteligência não hiberna. Aprendemos 24 horas por dia, nos 365 dias de cada ano. E as famílias “fazem férias” em qualquer época do ano. Nós trabalhamos no ritmo da nossa comunidade. Nas comunidades de aprendizagem, não existe ano letivo, nem padrão único na gestão do tempo. A senhora entendeu?”

A dita “supervisora” nada entendeu do que lhe disse. E ameaçou:

“Irei comunicar superiormente!”

A “inferior supervisora” deverá ter feito um relatório da visita e comunicado a ocorrência aos seus “superiores” hierárquicos. Certo é que não voltou a incomodar-nos. Mais tarde, vim a saber por quê…

A vida no interior das salas de aula das escolas “normais” estava completamente separada da vida em sociedade. Mas, aquela comunidade tomara consciência de burocráticos disparates. E, para escapar ao autoritário controle dos burocratas, substituíram o diretor por um conselho de direção, no qual os pais eram maioria.    

A mãe de um aluno vindo de outra escola assim se manifestou:

“Na escola onde o meu filho andava, a participação dos pais não era bem-vinda. Diziam isso apenas da boca para fora. O que as escolas entendem por participação dos pais se resume a fiscalizar se a criança fez toda a tarefa de casa e jamais reclamar do conteúdo ou metodologia. Embora entenda as dificuldades da escola, não concebo a ruptura que estão implantando entre família que educa e escola que ensina. Concordo que educação tem que vir da família, mas ao ver essa ruptura, isso me levou a pensar e a levar o meu filho a trocar de escola.”

Essa e muitas outras mães trocaram uma escola “sazonal”, onde não passavam da portaria, por uma escola “a tempo inteiro”, que eles mesmos dirigiam e onde tinham voz.

Por essa altura, a  minha amiga Tina comentaria deste modo o demissionismo  de certos professores e os disparates cometidos por autoritários diretores de escola:

“Os pais dizem que as escolas são fechadas, só aceitam suas presenças nas festas e só chamam para reclamar de seus filhos. Não querem a participação dos pais, acham ruim quando são questionadas e logo sobem uma barreira de arrogância acadêmica.

As escolas dizem que os pais não participam, não se interessam, não aparecem nas reuniões, quando muito aparecem nas festas. Reclamam dos filhos mal-educados, da agressividade e do desprezo dos pais. Mas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional determina no Artigo 12º. – VI:

“Articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola.”

Mais palavras para quê?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DIII)

Gerês, 17 de abril de 2041

No abril do distante 2021, a Receita Federal divulgou um documento propondo o fim da isenção de impostos para livros, com o argumento de que pobres não consumiam livros. Segundo a Receita, os livros seriam consumidos apenas pela faixa mais rica da população (rendimento superior a 10 salários-mínimos).

Se a tributação dos livros acontecesse, poderia aumentar em 25% o preço final de um livro para o consumidor, o que comprometeria ainda mais o acesso à leitura. Deixaria os livros ainda mais caros e distantes do poder de compra da população de baixa renda. Um absurdo!

Tive um amigo que vendia livros de porta em porta. Operário têxtil, no seu “tempo livre”, ia de porta em porta, metendo conversa com eventuais compradores. Era um homem culto, com quem aprendi da sabedoria que não vem nos livros. Quando me visitava, eu parava tudo o que estivesse a fazer. E encetava longas conversas sem assunto agendado, mas que nos conduziam sempre a inesperadas reflexões.

Falava da escola dos filhos e da escola que foi sua:

“Antigamente, era muita matéria a que a gente era obrigada a aprender. Mas, vai-se a ver, pouco ficou. Fazíamos muitas cópias, mas hoje damos muitos erros ao escrever. Eu aproveito para ler os livros que vou vendendo e poupo algum dinheirinho, para poder comprar livros para os meus filhos. Porque, na aula, é o professor quem lê.”

A escola da aula raramente conseguia criar hábitos de leitura nos seus alunos. O professor palestrante não estimulava a busca de respostas, dava resposta-padrão a perguntas jamais escutadas, também era vítima do instrucionismo. Num estudo sobre literacia, apenas onze professores em cem souberam indicar o título de um livro que tinham lido nos últimos três meses. Vários confessaram que não gostavam de ler.

Compassivo, perguntei a esses meus colegas qual o livro que mais gostaram de ler. Poucos responderam. E me fizeram retroceder a uma situação dos primórdios da Ponte, quando perguntei a jovens recém-chegados qual dos livros da nossa biblioteca queriam ler. Nem um só jovem respondeu. As bibliotecas das escolas de onde tinham vindo estavam fechadas a cadeado. Só tinham lido apostilas, manuais didáticos. Perguntei a um deles:

O que queres ser? Qual é o teu sonho?”

A resposta foi o silêncio. Tinham sido proibidos de ler, de sonhar.

Quando me referi a um determinado assunto, um dos jovens, finalmente, falou:

“Eu dei isso no terceiro ano, mas já não me lembro…”

Uma frase proferida pelo vendedor de livros confirmou o que o episódio vivido com os jovens me havia ensinado. Mas, a humildade digna das suas palavras contrastava com a arrogância de muitos doutores:

“Estudei a História todinha, de ponta a ponta, mas ficou pouca coisa. Nós éramos dez irmãos e nenhum foi capaz de se agarrar aos livros. Ninguém nos dizia que podia ser diferente e a gente não adivinhava.”

Um motorista de táxi falou-me da sua infância no Nordeste. Contou-me histórias de fome e abandono. Foi empurrado da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro. E se tornou um “viciado” em leitura.

Perguntou à esposa o que gostaria de ser. Ela respondeu querer ser professora, mas… que não gostava de ler. O marido a ajudou:

“A minha mulher fez o curso todo. Trazia os livros do Piaget, do Freire e de outros. Eu lia e explicava à minha mulher. Ela fez as provas e já é professora.”

O meu amigo que vendia livros de porta em porta tinha algo que o distinguia de muitos compradores: esse meu amigo lia os livros que vendia. E, porque os lia, ia preenchendo lacunas herdadas da escola da aula.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DII)

Ponte da Barca, 16 de abril de 2041

Ao longo de mais de meio século, foram milhares as mensagens recebidas de educadores, relatando situações como aquela que a Mercedes descreveu, nos idos de vinte:

Bom dia, Zé! Envio aqui algumas aflições, relatos do que vivi, desde o início do ano de 2021, na escola em que eu trabalho. Solicito que as informações mantenham o anonimato, pois a intenção não é prejudicar pessoalmente ninguém e sim compartilhar os tempos difíceis que ainda vivemos. Vamos lá!

Em junho de 2020, ao fazer o “aprender em comunidade” e me aprofundar sobre metodologias como a tutoria, iniciei um núcleo com vários educadores da rede pública. Eu informei a Direção da escola que, ao retornar do recesso escolar, eu não iria mais utilizar as aulas. Iria criar tutorias. A Direção disse que não era assim. Que a minha intenção era boa, mas que tudo precisava passar por eles, antes de ser feita qualquer coisa na escola. 

Entendi que era uma questão de poder, de controle. Concordei e disse que, a partir de então, informaria a Direção e convidava a diretor para participar nas reuniões do núcleo de projeto. Passei a informar. Contudo, muitas coisas foram negadas, sem qualquer fundamento legal ou científico. Adoeci, me afastei do trabalho por motivos de saúde. Fiquei de licença e afastada de tudo que envolvia a escola.

Quando retornei, a proposta apresentada pela escola foi de que os professores atuassem em duplas a fim de facilitar o contato com as famílias. Eu fiquei na equipe da turma do 3º ano. De início, achei fantástico e planejamos os encontros de acolhimento às famílias, um planejamento incrível para as semanas seguintes. Saímos do nosso encontro super motivadas. E veio outro “não”: 

“Vocês não vão fazer isso desse jeito. O acolhimento será feito apenas pelos professores regentes”. 

Sou professora regente, mas a diretora me proibiu do contato com as famílias. Disse que a pedagoga era a única responsável pela turma. Não houve acolhimento. Os alunos foram diretos para as malditas “atividades”! E eu fiquei sem conhecer os estudantes e suas famílias. 

Em março fui informada sobre quais seriam as minhas turmas. Isso mesmo, em março. E chegou a informação de que, a partir de uma data específica, poderíamos começar o projeto com as crianças. A data chegou. A “autorização”, não. 

Comuniquei à Direção que eles estavam me impedindo de trabalhar e que isso era algo muito dolorido para mim. Eu já não aguentava mais ficar sem ter contato com os estudantes e procurei uma forma de não quebrar as “leis” estabelecidas pela Direção. Criei um formulário simples sobre a disciplina que leciono, enviei para as professoras “responsáveis” pela turma e pedi que mandassem aos estudantes. 

A Direção mandou que as professoras apagassem a mensagem dos grupos, pois isso não foi autorizado pela Direção. As professoras vieram se explicar para mim de um jeito “sem graça”. Perguntei: Por quê? A resposta foi: “O planejamento das atividades precisa passar pela Direção”. E eu me pergunto: Vão planejar o quê? Para quem? 

Eu não estava no sistema operacional. Estava sem acesso aos grupos de WhatsApp e às plataformas de ensino remoto. Enquanto isso, os professores faziam aulas online e os grupos de WhatsApp seguiam cheios de atividades fotografadas dos cadernos das professoras.” 

A quantidade de mensagens contendo depoimentos semelhantes ao da Mercedes daria para escrever livros de encher uma estante inteira. Nas escolas dos idos de vinte, lideranças tóxicas destruíam projetos. Os seus autores adoeciam. Na fila de espera da psiquiatria os professores eram maioria.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DI)

Vila Real de Santo António, 15 de abril de 2041

Voltemos à pergunta da Tina: “Tem que ter aula?”

Como vos disse em cartinhas anteriores, o meu amigo Pedro era implacável na crítica da escola da aula e de uma espúria Base Nacional Curricular Comum, que legitimava o absurdo. Para Pedro Demo, a BNCC era “uma proposta conservadora e dissimulada, mistura de retórica barata e de má consciência. Confundia conteúdos e habilidades, em seiscentas páginas intragáveis”. 

Talvez o Pedro fosse o mais esclarecido cientista da educação da sua geração. Era, sobretudo, um pesquisador educador ético, rigoroso. Sabia que era preciso sair do sistema de ensinagem e “fazer outro”. Nos seus livros, abordou o conceito de “autoria”. Para o Pedro, o “protagonismo juvenil”, a “autonomia do estudante” e outros modos de recriar a escola tinham sido “atos falhos”:

“Se levássemos a sério o que seria “itinerário formativo”, facilmente reconheceríamos que implica “recriar a escola”, porque, sendo uma proposta de aprendizagem autoral, pede outro formato escolar, outro professor, outra pedagogia. Se o foco for a autoria do estudante – para aprender como autor – não é viável gerir isso com aula de 45 minutos, porque toda atividade de aprendizagem supõe tempo muito maior, programação aberta e flexível, participação ativa do estudante (ler, elaborar, pesquisar, estudar), também um professor que tenha autoria (que resumo em três lances: autor, cientista, pesquisador, ao que agora há que acrescentar cuidador). 

A escola que temos, do início do século passado, de molde fordista reprodutivista, tal qual está parodiado ostensiva e provocativamente nos “Tempos Modernos” de Chaplin, é uma fabriqueta instrucionista, devotada a reproduzir conteúdos curriculares, sistematicamente. 

Enquanto não falta aula, aprendizagem é apenas eventual. A BNCC, que, em termos concretos, é apenas um repositório de conteúdos curriculares organizados conforme alguma lógica acadêmica e didática, não pode recriar a escola, por mais que isto solicite. Também não muda os professores, condição maior para termos “outra escola”. Os conteúdos, devidamente codificados alfanumericamente (para que nenhum escape ao controle instrucionista), serão, provavelmente, transmitidos como sempre foram, porque é isto que o sistema, ao final, exige, não aprendizagem, e mormente porque os professores foram “deformados” para este tipo de atividade instrucionista na faculdade.

“Recriar a escola” é empreendimento frontalmente imenso e complexo, embora fosse o que mais parece decorrer dos diagnósticos disponíveis, mesmo com base em dados do Ideb ou PISA, por serem tais avaliações também propensamente instrucionistas”.

Completo esta cartinha saboreando a cáustica prosa do Pedro, pois o Mestre dizia tudo o que era preciso que se dissesse e bem melhor do que eu poderia dizer:

“O gesto da BNCC de pedir a “recriação da escola”, embora extremamente pertinente, se encaixa no rol retórico da má consciência. Toda mudança proposta é armada dentro do sistema, para aprimorá-lo ou adaptá-lo, nunca para o superar. O sistema instrucionista atual de ensino não faz sentido, porque é completamente inepto em termos de produzir aprendizagem. Não se trata de viver consertando uma canoa furada; precisamos de outra canoa, ou melhor, do mais moderno e atualizado transatlântico possível”. 

A sólida (e mordaz) fundamentação dos estudos do Pedro foi inspiração e suporte de mudança. Era a voz clamando no deserto. Mas era, também, um oásis de cientificidade, em tempo de negacionismo pedagógico.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (D)

Loulé, 14 de abril de 2041

O meu amigo Rubem dizia ter um jeito socrático de entender a educação:

 Acho que o seu objectivo é despertar nas pessoas aquilo que está adormecido dentro delas. Nós somos como palácios maravilhosos onde dormem centenas de inteligências diferentes, uma coisa parecida com a história da Bela Adormecida. A função principal do educador é dar o beijo que desperta a Bela Adormecida. Você tem de provocar para que algumas dessas inteligências acordem. Digo algumas porque nem todas podem ser despertadas, a gente não tem tempo para tudo. É isso o que a gente faz, provocar os alunos para que eles despertem as suas inteligências e possam então lidar com a vida.”

Era esse, também, o jeito dos tutores das turmas-piloto, a prática maiêutica essencial, que restituía aos aprendizes o direito de ser e de perguntar.

Em outra cartinha, disse-vos que chegavam à Ponte e ao Âncora centenas de jovens vítimas da escola da aula. Quando lhes perguntava o que queriam saber e fazer, respondiam com outra pergunta:

“Tio, eu posso dizer o que quero saber? Eu posso dizer o que quero fazer?”

Quando lhes perguntava o que queriam ser – sem acrescentar o “quando fores grande” – um sorriso acompanhava a resposta:

“Quero ser rapper. Quero ser goleiro. Quero ser cientista….”

Projetos de vida se consolidaram. A Sofia começou a sua carreira de rapper na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. O André foi campeão europeu de futebol de salão. Milhares de cientistas viram contemplados os seus talentos.

A escola instrucionista era um cemitério de vocações. O orgulho da mente racional do ego – que se manifestava através da do ceticismo – impedia os professores auleiros das aprendizagens indispensáveis à sua realização pessoal e profissional. A cultura, tecnicista reprimia o sentir, o instrucionismo atrofiava o ser, o modelo engendrado no século XIX ignorava que apenas pensar e controlar era estar doente dos sentidos.

Em 2020, o amigo Pedro Demo denunciava as péssimas condições da escola instrucionista. Dizia não existir um projeto de mudança satisfatório, parecendo que a escola que tínhamos era um modelo intocável. Num célebre texto com o título “EDUCAÇÃO À DERIVA: instrucionismo como patrimônio nacional”, escreveu:

“O sistema educacional mostra aberrações inomináveis em termos de qualidade da aprendizagem, que persistem arraigadas, não comparecendo, contudo, gesto minimamente adequado de mudança. Em especial no ensino médio (EM), o aprendizado de matemática é insignificante: foi de 9.1% em 2017; 90% dos estudantes não aprenderam; quase todos. No Enem, apenas 53 estudantes obtiveram nota máxima em redação, dentre 4 milhões de participantes; quase ninguém.”

Alheia aos trágicos indicadores e à avisada voz de Pedro Demo, a administração educacional tentava colmatar defeitos instrucionistas, injetando nas escolas “ensinos híbridos” e outras inutilidades, desperdiçando recursos e vidas.

Albert Einstein dizia não existir um caminho lógico para descobrir as leis universais; que o único caminho era a intuição. Na Ponte, no Âncora e, mais tarde, na Escola Aberta, foi a intuição que nos guiou.

Num tempo em que nem sequer sabíamos da existência de um Piaget, ou de uma Montessori, agimos por via do Amor e da Coragem. A intuição nos avisou de que, dando aula não ensinávamos, ou, pelo menos, não ensinavamos todos os alunos, como mandava a Constituição. O Amor nos guiou na busca de uma relação de escuta atenta… intuitiva. A Coragem nos fez transcender obstáculos e compreender que um projeto humano é sempre o projeto de um coletivo.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCIX)

Praia Verde, 13 de abril de 2041

Amanhã, o bisavô dos vossos filhos vos visitará. Deixarei convosco alguns documentos garimpados na casa velha. Como a “pérola” que junto a esta cartinha, um desenho feito por um aluno, numa aula da Idade Média. Poderia escrever “numa aula chata da Idade Média”, mas incorreria em redundância.

No tempo em que se “dava aula”, imperava a “chatice”. Para amenizar a imbecilidade travestida de pedagogia, os deschateadores de aula cantavam, dançavam, contribuindo para o “salve-se quem puder” egoísta da disputa de uma vaga na universidade.

Os homens inteligentes querem aprender; os outros querem ensinar”, disse-nos Anton Tchekhov. Os auleiros chateadores ou deschateadores insistiam na peregrina convicção de que é possível dar de beber a um cavalo, quando ele não tem sede. A ética da alteridade estava ausente nos lugares onde, pavlovianamente, se “chateava” alunos.

Referindo-se às escolas do século XIX – que, mais data show menos pau de giz, em nada diferiam das escolas deschateadores do século XXI – Stefan Zweig definiu a escola da aula do seguinte modo: é um exército formidável de guardiães disfarçados de professores, que, com meios artificiais e antinaturais se organiza para roubar à juventude a possibilidade de ser.

Mas, não há regra sem exceção…

Quando, nos idos de vinte, eu criticava a prática da aula, não “jogava fora o menino com a água do banho”. Toda a inovação radicava na tradição. Nem tudo o que o instrucionismo engendrou deveria ser desperdiçado. Aliás, nos idos de setenta, com os nossos alunos, ainda em adaptação a práticas do paradigma da aprendizagem, criamos um dispositivo a que demos o nome de “aula direta”. Contraditório? Nem por isso…

“Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”. Este velho e conhecido ditado hindu é recomendação de estar permanentemente receptivos à verdade. O autoconhecimento nos conduz ao reconhecimento do outro e à descoberta dos nossos dons, potenciais talentos. O seu desenvolvimento depende do encontro do discípulo com o mestre.

Esse encontro é evidente, por exemplo, na expressão musical, físico-motora, dramática, plástica. A busca de um mestre é inevitável. Na Ponte, a partir do “Preciso de Ajuda”, ou de uma conversa informal, crianças se organizavam para um encontro com um tutor especialista da área de interesse. Projetos de vida tomavam forma a partir de perguntas: O que queres ser? O que precisas aprender? O que vamos fazer? Com quem? Onde? Quando? Com o quê?… Por quê?

Os roteiros de estudo contemplavam as respostas a essas e outras perguntas, continham objetivos curriculares, encaminhavam para a pesquisa e para “aulas diretas”.

Quando professores me perguntavam como poderiam desenvolver autonomia nos seus alunos – o dito “protagonismo juvenil” – eu respondia:

“Ensinando! Dando aula! Para deixar de dar aula.”

Os professores eram competentes a “dar aula”. Eu deveria valorizar essa competência. Os professores sentiam-se seguros “dando aula” e eu reforçava esse sentimento de segurança.

Em meados de abril de 2021, voltei a “dar aula”, uma aula dialogada. Por que o fiz? Para assegurar que acontecesse, não só mudança, mas inovação. Durante algum tempo, pratiquei “homeopatia pedagógica”. Maieuticamente, na gramática do “um-para-um”, em equipe, reaprendi a deixar de “dar aula”.

Consumada a transição para o paradigma da aprendizagem, penetramos o da comunicação. Identificando necessidades comuns, eu “casamentava” educadores, agregando-os em círculos de vizinhança e de confiança.

Estava aberto o caminho da inovação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCVIII)

Montalegre, 12 de abril de 2041

Queridos netos,

Irei visitar-vos, em breve. Por agora, suportando as habituais dorezinhas ósseas (coisa de velho), passeio por terras de Trás-os-Montes, em visita ao meu amigo Tozé. Ele foi um extraordinário professor e dirigiu um centro de formação, onde, na década de oitenta, a didática passou por questionamentos. A propósito: dissestes serem “didáticas” as minhas últimas cartinhas. Não errastes. Efetivamente, creio ter retomado a prática semi-instrucionista das minhas “aulas dialogadas” dos idos de setenta do século passado. E vos direi por que razão o faço.

A memória de muitos educadores parece ser curta. Em 2041, observava fenômenos de regressão, reminiscências daqueles que eram comuns nos idos de vinte. E vigiava o cíclico retorno de práticas fósseis.

Na década de setenta, elaborei uma primeira crítica fundamentada do instrucionismo, para fundamentar o projeto da Ponte. Décadas atrás, a praga invadira a Internet. Por isso, quando o instrucionismo foi implodido e as salas de aula foram desmontadas, propus que se conservasse uma dessas salas, de modo a que as gerações vindouras vissem como os alunos dos séculos XIX, do século XX, e até mesmo do século XXI, foram presencial e remotamente maltratados.

Por essa altura, a Tina enviou-me um e-mail com três perguntas:

“Tem que ter aula? Tem que dividir por idade? Tem que ter prova?”

A Tina integrava um excelso grupo jurídico, que apoiou o processo de transição operado pelas turmas-piloto. Dele faziam parte – e aqui merecem referência, dada a sua entrega à causa das crianças – o Antônio, o Isaac, a Paula, o Ricardo, o Guga e outros advogados, que conferiram sustentabilidade jurídica ao projeto.

Recordo-me das respostas que dei. E aqui as reproduzirei. Eis a primeira.

“Tem que haver aula?”

A resposta foi um rotundo “Não”. Mas acrescentei a fundamentação. Sem a pretensão de concorrer com os meus amigos juristas, realizei uma rápida análise de conteúdo das leis de bases do Brasil e de Portugal.

A lei portuguesa era bem mais generosa do que a brasileira, pois consagrara aquilo que poderia ser chamada de “cláusula pétrea”. Refiro-me ao número 3 do artigo 48º da Lei de Bases do Sistema Educativo:

“Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”

Isso mesmo. Lestes bem: critérios de natureza pedagógica e científica deveriam prevalecer sobre critérios de natureza administrativa. Mas, não era isso o que acontecia. Apesar de ninguém poder alegar o desconhecimento da lei, parecia que os burocratas das secretarias não conheciam a lei, pois tomavam decisões com base em critérios de natureza administrativa. Talvez padecessem de analfabetismo funcional – tendo lido a lei, não a souberam interpretar.

O teor da lei era coerente com o artigo citado. Na lei portuguesa, a palavra “aula” surgia duas vezes, enquanto a palavra “autonomia” era usada cinco vezes. O termo “pedagogia”, em diferentes versões, surgia vinte e três vezes. E a palavra “ciência”, em diversos contextos, trinta e uma!

Por seu turno, na lei brasileira, a “aula” era referida 4 vezes e a palavra “autonomia”. o dobro: oito vezes! A “ciência” era citada onze vezes. E vinte vezes era utilizado o termo ”pedagogia”.

Estes quantitativos ilustravam, sobremaneira, a necessidade de, já nos idos de vinte, erradicar a “aula” da elaboração dos regulamentos. Mas, havia outras razões, muitos motivos para acabar com o aulismo. Prometo expô-las em próximas cartas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCVII)

Alvarães, 11 de abril de 2041

Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens entre os vinte e os trinta anos. Discutíamos as virtudes e os defeitos da “escola de antigamente”, num ambiente de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos, um dos jovens empertigou-se e assumiu a defesa do chamado “ensino tradicional” (a seguir abreviado para “ET”):

“Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu andei no “ET” e saí de lá muito bem-preparado!”

“Ainda bem.” – respondi, atenuando a irritação do meu jovem aluno. Ele insistiu, realçando as qualidades do “ET”, nomeadamente, “a preparação que dava na Matemática e na Língua Portuguesa” (sic). Eu contrapus, chamando a atenção para as conclusões de estudos, que contrariavam os hipotéticos méritos do “ET”. E acrescentei:

“Permitis que vos coloque algumas perguntas?”

“Faça o favor!” – disseram alguns num tom desafiador.

Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples, conteúdos do currículo do ensino fundamental. Uma estava relacionada com a Matemática; outra, com a língua Portuguesa. Os jovens entupiram. Alguns ainda balbuciaram algo ininteligível, depois fez-se um silêncio de embaraço. Eu rematei a discussão com crueldade. Recorri a uma pergunta matreira à qual nunca ninguém, até esta data, me soube responder:

“Quem descobriu os Açores?” 

A resposta estava contida no livro didático dos primeiros anos de escolaridade. Aqueles candidatos a professor tiveram aula sobre os Açores (que nem eram açores – eram milhafres). Tinham vertido em prova o bla, bla, bla de um auleiro e este tinha considerado que haviam aprendido o que eram os Açores. Pura ilusão!

Se nas áreas nobres já estávamos conversados, a incursão na História de Portugal acabou com a resistência daqueles jovens tão combativos. Todos tinham decorado o sistema galaico-duriense, o “a ante, após, até” gramatical, gabavam-se de saber na ponta da língua as datas das “descobertas” marítimas e os nomes dos audazes achadores.

Tudo tinham “vomitado” (sic) nos testes e esquecido, para “arranjar espaço para o que não cabia nos copianços” (cola). Para aliviar as tensões, magnânimo, como convinha à circunstância, lá fui dizendo que nem tudo se deve rejeitar no “ET”, que é falsa a dicotomia entre moderno e antigo, entre inovação e tradição. Mas, se no domínio da acumulação de informação, o “ET” falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem de outros saberes? Quem se daria conta da falência do “ET”, também, em outros domínios?

O tradicional alheamento da escola relativamente à educação dos afetos, o tradicional ostracismo a que era votado o desenvolvimento sociomoral dos jovens, contribuíam para reforçar a ideia de que teríamos de aceitar como fatalidade uma sociedade de vícios privados e públicas virtudes.

Assistíamos ao escândalo da pedofilia e ao escândalo de uma comunicação social ávida de escândalos, que maculava a informação com exercícios de um voyeurismo sensacionalista e mórbido. Os herdeiros do “ET” consumiam programas imbecis, que a televisão e a Internet à medida do “gosto médio” lhes impingiam. Os herdeiros do “ET” eram incapazes de decifrar a mensagem contida na posologia de um medicamento, ou num edital. Viviam privados de entendimento de mensagens estéticas que faziam os humanos mais humanos. Obscenos e estultos, ultrapassavam numa curva, furavam a fila de espera, transgredindo códigos, escamoteando a necessidade do respeito por todas as formas de vida e pelo património comum.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCVI)

São Pedro do Sul, 10 de abril de 2041

Quero dar a palavra a uma Liliana, generosa professora de nova geração, que resistiu aos convites do fácil e do cómodo. Tem a palavra a Liliana:

“As incertezas, as dúvidas e as lágrimas ainda me perseguem. Os dias passam de uma forma alucinante e sinto-me cada vez mais infeliz. Em alguns dias chego mesmo a duvidar se esta será a minha vocação. Sinto-me tão insegura que na escola aparento ser mais uma “professora” (daquelas que tanto criticava). Às vezes, não sei o que fazer: não quero continuar assim, mas também não sei como alcançar a escola dos meus sonhos. Mas não se preocupe, não serei daquelas professoras que lhe provocam pesadelos. O que me irrita profundamente é saber que não estou a agir da melhor forma ou como gostaria e não conseguir fazer nada para o evitar. Bem, acho que ter consciência é meio caminho andado. Obrigada por receber este desabafo. Espero que o próximo seja mais sorridente. Para alcançar o sonho, basta-me ser forte, escutar o meu coração e sobretudo o coração dos meus meninos, não é?” 

A Liliana escutou o coração… Ajudei-a a instituir tutorias, início do seu protótipo de mudança. Quando existia uma equipa, ou, pelo menos, professores querendo mudar, cada núcleo e cada tutor apreendia o processo a seu modo e assumia-o no seu ritmo.

Poderia ser tutor todo o educador que pudesse estar disponível a qualquer hora de qualquer dia (inclusive fim de semana) para encontros com as famílias dos seus tutorandos. Cada educador (assumindo o estatuto de tutor) não poderia estar mais de cinco horas por dia em trabalho direto com os aprendizes. Aconselhável seria uma hora diária, a partir do momento em que o aprendiz se assumisse em autonomia.

O tutor não pode dar respostas. Não preparava projetos para os alunos, mas os construía com os alunos, a partir de necessidades, desejos, problemas, sonhos. Não fazia planejamento de aula, mas elaborava com os seus tutorandos roteiros de estudo e planejamentos; ensinava os seus tutorandos a planejar, a planejar-se, a saber gerir recursos, tempos, espaços, a saber gerir as suas vidas.

O tutor não “dava aula”. Ele questionava, ajudava, esclarecia, assegurava a mediação pedagógica, avaliava, mantinha atualizado o registro de avaliação formativa de cada tutorando, fazia observações ocasionais e sistemáticas, verificava se os dispositivos pedagógicos estavam sendo devidamente utilizados, se as regras de convivência estavam sendo cumpridas.

A afetividade não é neutra e a tutoria acontecia numa escolha mútua de tutores e tutorandos. No primeiro mês do projeto, seriam os educadores a escolher os seus tutorados. Formariam grupos constituídos por cerca de uma dezena de jovens. Quando o sistema de relações estivesse bem consolidado e houvesse profundo conhecimento mútuo, os jovens poderiam escolher os seus tutores.

A ratio professor/aluno nas escolas brasileiras era essa: um para dez. Mas, nas escolas que insistam em formar turmas poder-se-ia aceitar, apenas no primeiro ano do projeto, um número de alunos superior ao quantitativo ideal de uma tutoria (entre 7 e 15).

Na prática de uma ética do cuidado, uma forma suplementar de tutoria poderia ser a “ajuda entre pares”. Voluntariamente, durante 15 minutos diários, jovens ajudariam jovens. Por exemplo, os já alfabetizados poderiam aqueles que estavam sendo alfabetizados. O mesmo poderia acontecer entre pares de educadores.

Sem fazer das crianças (nem dos professores) cobaias de laboratório, “homeopaticamente”, a mudança acontecia. Estava preparado o terreno para a… inovação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCV)

São Tomé de Negrelos, 9 de abril de 2041

No passado dia 3 de abril, se ainda entre nós estivesse, a Maria Nilde faria cento e onze anos. Hoje, a minha amiga Geni celebra mais um aniversário. E eu vou evocando homens e mulheres do passado, educadores e educadoras admiráveis, para que a sua memória não pereça.

A Geni assumiu a dura tarefa de continuar o projeto “Fazer a Ponte”. Com a Anita, resolveu problemas pendentes e defrontou aqueles que um ministério autista lhes criou. Como já vos disse, a história da Ponte foi feita de resiliência e sofrimento, trágica sina de um sistema que não merecia os professores que tinha e que permitia que os raros focos de renovação se apagassem.

Quando a Ponte conseguiu assegurar a todos os alunos o direito à educação, fomos alvo de torpes ataques. Ora era o terrorismo verbal, via telefone, ora eram lançados panfletos, na calada da noite, contendo falsas acusações.

Recordo-me de ver a Luísa em lágrimas, dizendo:

“Zé, é melhor acabarmos com isto. Já não aguento mais! É muita maldade! Queres saber? Hoje, a mãe da Antónia veio perguntar-me se tu eras pedófilo. Ouviste? Pedófilo! É o que andam por aí a dizer. É boato, mas pode haver quem acredite. Já não aguento mais!” 

Insinuações e boatos em publicados nos jornais da região, ameaças veladas de acabar o projeto eram o nosso “pão de cada dia”. Sofríamos penalizações do poder público, mas o sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Apercebemo-nos de que o maior aliado de um professor era o outro professor. Mas, com mágoa, também descobrimos que o maior inimigo de um professor “diferente” era o professor da escola do lado.

Não estávamos sozinhos. A Jacinta, a Conceição, a Augusta e muitas outras educadoras se uniam e resistiam. Os exemplos de excelentes profissionais incomodavam. Mas, só muito tarde, por experiência pessoal, compreendi por que razão diziam que a professora Josefa “era uma chata”. Assim a chamavam. Também lhe chamaram arrogante, quando defendia os seus pontos de vista e os fundamentava, pondo em causa as práticas dos injuriadores.

Era considerada “arrogante” porque conseguira garantir sustentabilidade pedagógica, administrativa e financeira a si e ao seu projeto. Então, a acusaram de falta de humildade, quando ela apresentava publicamente um projeto pleno de êxito. Não era considerada “humilde, porque desmascarara a mediocridade dos antiéticos, que a maltratavam.

Voltaram a acusá-la de arrogante, quando ela disse ter nojo do dinheiro. O vil metal tinha sido o motivo da prisão do seu pai e da morte prematura da sua mãe. Aprendera a ser economicamente autônoma, enquanto os seus detratores se vitimizavam, por não terem aprendido a gerir proventos – nem a “educação financeira”, modismo da época, lhes valera!

Por que evoquei a Maria Nilde, no início desta cartinha? Porque era autônoma. A autonomia é relacional. Ninguém é autônomo, quando está sozinho. Professor solitário em sala de aula crê sê-lo, mas não o é. É autossuficiente, individualista e transmite valores, transmite individualismo aos seus alunos, produz heteronímia.

A Nilde sabia por que fazia aquilo que fazia, sabia fundamentar a sua prática, era intelectual e moralmente autônoma. Mas os “vocacionais” careciam de autonomia administrativa. Tanto bastou para que a ditadura fechasse as escolas e para que ela e os seus companheiros sofressem as agruras da prisão.

Nos idos de vinte, quem visitava os lugares de criatividade e liberdade dos extintos ginásios vocacionais, só via janelas ornadas de grades e cadeados.

 

Por: José Pacheco

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