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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCIV)

Canas de Senhorim, 6 de abril de 2041

No último terço do mês de março de há vinte anos, a tragédia anunciada registrava mais de 3000 mortes diáriasNo último dia desse mês, com 3.950 mortes por Covid-19 em 24 horas, o Brasil batia um novo e triste recorde de óbitos. Tal era o tamanho do desprezo pela vida humana a que políticos medíocres haviam votado o povo brasileiro.

Nesse mesmo dia, mas em 2021, o vosso avô estava a caminho de Brasília, almejando ser contemplado por uma vacina, que o pusesse a salvo. Mas, sem poder deixar de pensar naqueles que, por incúria de desgovernantes, não se salvariam. No Distrito Federal, a pandemia de Covid se agravava, com corpos no chão de hospital e muitas pessoas aguardando na fila para leito de UTI. O vírus era espelho que refletia crises sociais mais profundas. Os sintomas de doenças de que padecia a sociedade antes da pandemia enfaticamente se revelavam. E até a inatividade, o ócio a que o confinamento obrigava, nos causava uma fadiga anormal, mais intensa do que o rotineiro cansaço dos dias normais.

“E o que tem a Educação a ver com isso?” – alguém perguntou.

“Tudo” – respondi – “A educação escolar nem sequer havia ensinado a lavar as mãos. E a obediência formal cultivada na escola instrucionista era impeditiva da autodisciplina e do aprender a respeitar o outro e a cuidar do próximo”.

No meio do caos instalado, uma nova educação emergia. Em círculos de vizinhança, cartas de princípios e de acordos de convivência davam o tom a uma “nova ordem social”. Procedia-se à análise de regulamentos e outros documentos de política educacional adotados pela administração, para verificar se o seu conteúdo era coerente com a Lei de Diretrizes e Bases, com o Regimento Interno e com o Projeto Político-Pedagógico da organização.

Escutei, certa vez, que havia uns idiotas que retiravam deste documento a palavra “político”, como se fosse possível existir projetos apolíticos. E uma professora dissera que deixava a política fora da sala de aula. Santa ignorância! Quem dizia “não fazer política” não se apercebia de que, por omissão, reproduzia um determinado modelo escolar, social e… político.

A Carta de Princípios deveria ser coerente com a definição do perfil do aluno (sujeito de aprendizagem) e do educador da equipe de projeto. E, para além dos documentos já referidos, seriam objeto de análise os emanados do ministério, que, de algum modo, estivessem relacionados com inovação e currículo. Também deveria ser consultada a Constituição, o Relatório Delors (da UNESCO), a Carta da Terra, os ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), o Manifesto da Transdisciplinaridade.

Ao cabo dessas tarefas, a equipe teria redigido e aprovado o “Perfil do Educador” e elaborado um “Termo de Compromisso”. Através da assinatura desses documentos, os elementos da equipe de projeto assumiam um compromisso ético com a educação e com as comunidades a que serviam.

O levantamento de valores predominantes na comunidade de contexto e um inventário de necessidades da população completava essa fase do processo formativo, enquanto se estimulava a reflexão sobre habilidades de liderança, que promovessem uma atmosfera de harmonia e de cooperação.

Acaso a equipe deparasse com conflitos de interesses ou abusos de poder, deveria agir no sentido do cumprimento do projeto, construtivamente, propondo o diálogo e respeitando as atitudes de quem não desejasse participar em processos de mudança.

Eu acompanhava esses educadores dotados de um estranha fé e que diziam não existir amor verdadeiro sem desprendimento e confiança.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCIII)

Meda, 8 de abril de 2041

Recordais-vos, certamente, de vos ter falado de um velho rascunho encontrado entre outras antiguidades, num armário da casa velha. Nesse papelinho estavam inscritas propostas de tarefas como:

“Construir um cenário para a educação local, com base nos indicadores de implementação do projeto; identificar o potencial local para construção de comunidades de aprendizagem; disponibilizar contributos que promovam a eco sustentabilidade, o estímulo ao espírito inventivo e criação de soluções novas, bem como de responsabilidade social, princípio ético que nos dizia que tudo o que fosse inovado o deveria ser para benefício coletivo; sistematizar o conhecimento, para posterior difusão”.

A leitura desse escrito me comoveu. Ajudou-me a compreender por que razão, nos idos de vinte, nos chamavam “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros.

Assim eram tratados professores como a Cecília, o Bruno, o André, a Lívia, a Ingrid, a Carolina, o Tuck, a Jana, a Fabi, a Ilka e muitos outros, que sinto orgulho de ter conhecido e de os ter como amigos. Continuam à espera de que alguém os descubra, reconheça e compreenda o alcance das suas ações. Em 2041, sigo os seus passos, insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei, reencontrei e achei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que de bom eu possa ser. E o êxito das turmas-piloto.

 

A utopia passava pela adequação dos espaços de aprendizagem, apetrechados com materiais necessários a uma organização com referência a novos paradigmas. O prédio da escola convertia-se numa “ágora”, espaço de encontro, aprendizagem, partilha. A par da atualização do espólio das bibliotecas escolares e comunitárias, eram disponibilizados dispositivos de acesso à Internet e instalada uma plataforma digital de aprendizagem.

Em cada espaço de aprendizagem, estavam sempre dois ou mais educadores, num efetivo trabalho de equipe, como observei na escolinha da minha amiga Lúcia. Voltei de lá com mais alento e vontade de não desistir. Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar, do quanto teria de aperfeiçoar a minha prática. Voltei com a minha “fé pedagógica” fortalecida, porque recebia desses professores lições de humanidade.

Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de múltiplas interações, cooperação, comunicação. Hoje, sabemos que, nos idos de vinte, as escolas eram, quase sempre, espaços de solidão e que a solidão dos professores era da mesma natureza da solidão dos alunos. Só os “utópicos” ousavam criar solidários laços. Lede o que aconteceu na escola da Lúcia, decorridos dois meses após a chegada do Miro.

Ele já escrevia frases, já fazia preparações no laboratório das ciências, até já lia palavras em inglês. E foi a professora de Inglês que protagonizou um episódio que viria a influenciar o curso da recuperação do Miro.

Perante uma atitude menos correta, a professora repreendeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências da reprimenda num momento ainda tão frágil da reciclagem dos afetos, emendou a mão como pôde, explicou-lhe o essencial da besteira, pediu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão.

“Aqui, os professores pedem desculpa?” – inquiriu o Miro, perplexo.

“Claro!” – respondeu a Lúcia.

O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu viagem, para que as professoras não vissem que pela sua cara de buliçoso inveterado passeava a manga da camisola com que limpava uma lágrima teimosa.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCII)

Aguiar da Beira, 7 de abril de 2041

O Miro percorreu a via-sacra do instrucionismo até chegar àquela escola, por recomendação de uma técnica de serviço social e de uma psicóloga. Passara pelo ensino especial e por outros padecimentos. Um professor aproximou-se e propôs-lhe que escrevesse as suas primeiras impressões da nova escola.

“Não sei, não sou capaz, não faço!”

O professor insistiu com jeitinho. Mas…

“Mas eu não sou obrigado a fazer. Você não manda em mim. Você não é meu pai!”

O professor era teimoso, mas logo ouviu uma sugestão:

“Ponha-me lá fora. Na outra escola, quando fazia besteira, punham-me lá fora. Marque-me uma falta!” 

O Miro não sabia que só estava carente de firmeza e carinho. O pai, há muito tempo, abandonara a família. A mãe “já não tinha mão nele e “que nem pensasse tocar-lhe”. Professores, a julgar pelo condicionamento que nele se tinha operado, poucos teria encontrado pelo caminho.

O Miro tinha passado sete anos sozinho em casa e outros tantos na escola, e deixara de acreditar ser possível aprender:

“Você sabe que, na outra escola, eu só tinha aulas de educação física?”

À quarta tentativa de persuasão, quando lhe pediram que fizesse algo de que ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem da tortura da escrita e lhe “ditassem umas contas, mas só de dois números”, pois apenas se recordava (e mal) das contas de somar e de diminuir.

“Eu sou assim. No hospital, a psicólica até disse à minha mãe que eu sou atrasado da cabeça p´raí uns cinco anos”.

Nos idos de vinte, não havia semana em que não recebesse mensagens de esperança, ou de desespero, de professores da nova escola do Miro. Resistiam a “ser como todos os outros” mas, sendo “utópicos”, eram depreciados, caluniados, perseguidos, ou ignorados, remetidos para uma solidão compulsiva, em escolas habitadas por sombras de alunos e de professores.

Quando rompiam o cerco da solidão, deparavam com obstáculos de que, um dia, talvez vos fale. E o que fizeram esses “utópicos”, que merecesse hostilidade? Por abril de 2021, entregaram documentos fundadores de comunidades de aprendizagem aos órgãos de direção, gestão e administração, acompanhados de um pedido de diálogo.

Aguardaram a marcação de encontros feitos de mútua disponibilidade e colaboração. Quase sempre, o silencio dos “superiores” foi a resposta, o que não impediu que o projeto continuasse a ser desenvolvido.

A partir do momento em que se iniciou o processo de transformação, foram adotadas práticas coerentes com a lei e a ciência. Os normativos das secretarias deixaram de fazer sentido, pois contrariavam o disposto na lei e eram desprovidos de fundamentação científica. As novas práticas eram caraterizadas por uma gestão autônoma e flexível do currículo, que dispensavam, por exemplo, a formação de turmas, ou o cumprimento de um horário-padrão.

No decurso do primeiro ano de desenvolvimento do projeto, deveria ser negociado um Termo de Autonomia, tendo por referência uma organização social autónoma, onde se praticaria uma gestão verdadeiramente democrática.

Visava-se materializar os princípios fundadores da estrutura organizacional, refletir sobre espaços e tempos de aprendizagem, encontrar modos de produção de conhecimento, rever processos de avaliação.

O projeto seria culturalmente reconfigurado com a participação da comunidade. Apresentando as suas demandas e consciente de que a sua participação era plena, a comunidade se apropriava de fazeres pedagógicos (e antropogógicos), contextualizando-os na realidade em que estava inserida, modificando-a, transformando-a.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXC)

Gaia, 3 de abril de 2041

termo hebraico Pesach está na origem da palavra Páscoa e significa “passagem”. Simbolicamente, Páscoa é oportunidade para refletir sobre vida ressignificada. A Páscoa da aprendizagem começou a ser celebrada há vinte anos, em pleno pico da pandemia. A Páscoa de 2021 foi um anúncio de ressurreição, o início de libertação do autoritarismo, para celebrar o amor e a vida.

Na Páscoa de 2021, a minha amiga Carla ofereceu-me um documento histórico. Nele era descrita a perseguição dos cristãos-novos que ousavam celebrar a “Pesach”.

Em 1506, já não havia judaísmo em Portugal. Contudo, um grupo de judeus cristãos-novos foi denunciado em abril de 1506, por realizar um “Seder de Pessach” clandestino. Aquele dia fatídico era também a primeira noite de Pessach, data que por acaso coincidiu com a Páscoa dos cristãos.

A cerimônia foi interrompida por religiosos fanáticos. Pessoas foram presas, enquanto a multidão, aos gritos, pedia que fossem queimados vivos por heresia.

A peste, que grassava em Lisboa, era uma situação propícia para o ódio e para o fanatismo religioso. Padres lideraram a turba e atuaram como verdadeiros carrascos.

A massa popular, sedenta de sangue, capturou, perseguiu e arrancou os cristãos-novos de suas casas, levando-os para as fogueiras onde seriam queimados vivos. As casas e os pertences das vítimas foram saqueados. Crianças e bebês foram jogados pelas janelas e contra as paredes. Por três dias, Lisboa foi palco de um massacre. Calcula-se que mais de dois mil judeus foram assassinados no massacre da Páscoa de 1506.

Cinco séculos decorridos, as perseguições eram menos violentas, as ameaças mais suaves, mas situações análogas se repetiam. Negacionistas recuperavam velhas crenças, fundamentalistas impunham tenebrosas práticas. Se fosse permitido queimar vivos seres humanos dissidentes, certamente o fariam.

Aproveitando marés de ignorância e despeito, os “fundamentalistas” do dito “ensino tradicional” retomaram as tentativas de assassinar sonhos. Distópica e despoticamente, .se atiram com inquisitorial fúria contra o que não conseguiam entender.

A educação que se fazia no século XVI pouco diferia daquela que sofríamos no século XXI. Nos idos de vinte, um “novo normal” consistiria em aceitar diferenças, cultivar o respeito pela lei, mas o poder público obrigava as escolas a desrespeitá-la.

“Um homem faz o que deve fazer – apesar das consequências pessoais, apesar dos obstáculos, perigos e pressões – e é essa a base de toda a moralidade humana”, Kennedy dizia. E o sistema de ensinagem foi interpelado por professores conscientes do genocídio educacional causado pelo instrucionismo. Mas, quem ousava questionar era excluído, perseguido. Não restava alternativa. Se a administração educacional ostracizava propostas fundamentadas na lei, os professores passaram a rejeitar imposições emanadas da administração, porque, paradoxalmente, os impediam de cumprir a lei.

Na Páscoa do isolamento social, centenas de educadores informaram diretores, gestores e administradores de que não iriam acatar regulamentos instrucionistas. Aquilo que a administração poderia fazer seria guardar tais normativos num museu da pedagogia, ou adequar o seu quadro normativo à educação do século XXI.

No exercício de fraterna desobediência, a amorosidade despontava e a coragem renascia, erradicando negacionismos e fundamentalismos pedagógicos. A Adriane ousava dizer “BASTA!” E o Brandão, nas suas crônicas, escrevia:

“Parece que a reação já começou com a desobediência civil.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXIX)

Pampilhosa da Serra, 4 de abril de 2041

Conheci o Miguel num congresso de professores tão fraterno e participado como há muito não via. Esse exímio contador de histórias falou de um navio à deriva, cuja tripulação adoecera por falta de água potável.

O telegrafista lançava sucessivos apelos:

“S.O.S., precisamos de água!… S.O.S., precisamos de água!”

Até que um outro navio lhe respondeu:

“Enchei os tanques com água!”.

Sequioso e angustiado, o telegrafista repetiu o lancinante apelo:

”S.O.S., precisamos de água!”

Então, a tripulação do outro navio completou a mensagem:

“Enchei os tanques com água! Estais a navegar em água doce.”

Enquanto o Miguel aludia metaforicamente aos que adoptaram o manual da sobrevivência digna – o manual dos que sabem que navegar é preciso e dos que não se deixam morrer de sede à beira da água – dei por mim a evocar viajantes solidários que, numa certa escola, navegaram o sonho de ajudar as crianças a serem pessoas mais sábias e felizes.

Quase a desembarcar num porto de saudade, estou convicto de que a viagem valeu a pena. E de que a nova tripulação há-de manter o rumo, há-de segurar o leme, sempre que os ventos não soprem de feição. Os novos navegantes protegerão as crianças do naufrágio nas marés da ignorância. Ajudá-las-ão a decifrar o ABC da guerra e da paz.

Na Geografia, as crianças aprenderão que a palavra “assassínio” tanto pode ser escrita com um A de Afeganistão como com um A de América. Na Língua Inglesa, as crianças aprenderão que o adjetivo “bad” pode ser escrito com um b de Bin Laden, mas também com um b de Bush. E, num re-ligare curricular essencial, as crianças aprenderão que a palavra “cultura” começa com um c de Cristo e de Corão.

Nos idos de vinte, apercebi-me de que tinha no computador um auto corretor fundamentalista. Não reagia ao termo Cristo, mas, tão logo digitei a palavra Corão, sublinhou-a a vermelho. Vivíamos tempos sombrios, tempos de intolerância… e de mudança.

Em latim, a palavra “Aprilis” significa “abertura” em alusão à generosa e dadivosa germinação das plantas, que acontecia nessa época no hemisfério norte. O mês de abril é o mais original mês dos calendários das comunidades tradicionais, pois é dedicado à celebração do Amor e da Vida.

Decorria o mês de abril, quando as “turmas-piloto instalaram protótipos de mudança. Dado que o processo formativo é caraterizado pelo isomorfismo, a cada projeto desenvolvido pela equipe de projeto correspondia uma tarefa de idêntica natureza, a desenvolver com alunos e com a comunidade. Com o apoio e acompanhamento de uma equipe de formadores, os participantes no projeto organizaram roteiros de estudo, visando a reelaboração da sua cultura pessoal e profissional.

Aproveitando aquilo que os professores eram e o que sabiam fazer (valorizando o saber “dar aula”), todos os participantes da formação em núcleo de projeto aprenderam a utilizar dispositivos pedagógicos, exercitaram a metodologia de trabalho de projeto, aprenderam a fazer roteiros de estudo, como fazer avaliação etc. À semelhança do educando, cada educador (tutor) desenvolvia o seu projeto de reelaboração cultural, em sucessivos roteiros de estudo, que integravam as dimensões curriculares da subjetividade, da comunidade e da consciência planetária.

Paralelamente, haveria lugar à elaboração de roteiros de pesquisa, com objeto inicial igual para todos os grupos. Por exemplo: reconhecimento do bairro, identificação de espaços e pessoas com potencial educativo…

O trabalho dos educadores seria sempre realizado em equipe. Um educador nunca deveria agir sozinho.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXVIII)

Santa Senhorinha, 2 de abril de 2041

Volto a citar o amigo Wilson:

“Faltando um quarto de século para o fim do século XX, aparecia em Portugal uma outra maneira de se fazer funcionar uma escola, algo diferente daquela que se estruturou após a revolução industrial. Diferente em muitos aspectos. Numa primeira olhada, destaca-se o que não tem: não tem aula, não tem turma, não tem ano e, portanto, ninguém ali repete o ano, assim como ninguém “passa de ano”. Crianças não vão ali para assistir aulas: vão para estudar e aprender. Professores, por sua vez, não estão ali para dar aula: estão ali para acompanhar, ajudar alunos a aprender. Professores não aplicam provas, alunos não fazem provas, professores não corrigem provas, nem dão notas. Fazem avaliação!

Num segundo olhar, são muitas coisas que não costumam ser encontradas em escolas: tutor, plano de estudos, grupos de responsabilidade, assembleia, “preciso de ajuda”, “eu já sei”, “acho bem”, “acho mal”, direitos e deveres elaborados pelos alunos.

O pai Wilson conhecia o teor do projeto e as vantagens da “passagem do centro no professor para o centro no aluno”. Como pai, participava ativamente no processo de negociação do primeiro contrato de autonomia celebrado entre uma escola e o poder público. Tomara consciência de que, tradicionalmente, o espaço social de intervenção dos pais nas escolas era exíguo. Por isso, contribuía para a elaboração da matriz axiológica do projeto.

A criação de um núcleo de projeto marcava o início da reconfiguração das práticas. Os educadores que o constituíam procediam à identificação de valores comuns, porque os seres humanos são, implícita ou explicitamente, conduzidos por valores, que comportamentos e atitudes refletem. Um valor é um fundamento ético, que norteia (ou suleia) o comportamento humano.

Cada educador elaborava uma lista de valores, que considerava serem fundamentais nas suas vidas. Depois, verificar-se-ia se haveria valores comuns às várias listas. Esta tarefa poderia ser realizada com recurso a uma dinâmica chamada “árvore dos valores”. Tomava forma a matriz axiológica do projeto.

A escola pública da Ponte era considerada uma escola ”anormal”, porque nela os pais tinham voz e o poder de decidir. Se nas escolas ditas “normais”, os pais dos alunos não sentiam a escola como coisa sua, por que deveriam respeitá-la? Por que respeitariam regulamentos em cuja elaboração não participaram? Em quantas escolas os representantes dos pais dos alunos participavam nos órgãos de direção, administração e gestão, exercendo em pleno as suas funções e fazendo valer os seus direitos? Naquele tempo, talvez apenas a Ponte. E com tristeza o digo.

Em 2004, extinguimos órgãos unipessoais e criamos conselhos. Com a celebração de um contrato de autonomia, o diretor (que tinha dever de obediência hierárquica) foi substituído por um Conselho de Direção, coordenado por um representante dos pais (que não estavam obrigados a obedecer). Nos anos seguintes, o contrato de autonomia viria a ser descaracterizado pela prepotência do ministério. Mas, os pais sempre estiveram presentes, quando foi preciso decidir o destino do projeto.

Li num jornal o comentário de uma professora que, ao cabo de mais de trinta anos de serviço, se viu envolvida na aventura de criar um “agrupamento de escolas”:

“Há dias, houve uma reunião e estava lá um representante dos pais. Fiquei espantada! Com esta idade, nunca tinha visto nenhum!”

A exclamação só constituiria surpresa para quem não vivesse o quotidiano de escolas “normais”, onde os pais não passavam da portaria.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXVII)

Candal, no primeiro dia de abril de 2041

Querido Marcos,

Querida Alice,

Surpresa! Esta cartinha não é uma “arapuca” do “dia dos enganos”. É verdade. Voltei a Portugal, já perto de completar noventa anos, para vos abraçar e para participar da instalação de um museu. Isso mesmo: um museu, que documente êxitos e adversidades por que passaram aqueles educadores que pugnaram pelo direito à educação.

Aproveitei para esquadrinhar uns cantinhos da casa velha, pois sei que em alguns recantos se escondem documentos de antanho, autênticas relíquias. Entre as velharias, encontrei o rascunho de uma sequência de “tarefas para a criação de turmas-piloto de comunidades de aprendizagem”. Tem data de abril de 2004 e a sequência começa pela criação de um “Núcleo de Projeto”, dispositivo central do processo de mudança das práticas.

Esse documento estabelecia o primeiro passo de um certo retomar do desenvolvimento pessoal e profissional e da concretização de projetos. Acontecia no encontro entre professores, pais de alunos, familiares, funcionários de escolas, voluntários, que se constituíam em equipe de projeto.

Essa equipe de projeto era constituída por um mínimo de três educadores, devendo incluir professores em serviço na organização social onde o núcleo fosse constituído. Seria, também, aconselhável incluir na equipe de projeto representantes da direção da escola, pesquisadores, estagiários.

O Núcleo de Projeto era alargado a educadores que manifestassem vontade de o integrar. Considerada a escola como nodo de uma rede de aprendizagem, eram constituídas parcerias. E, tão logo o processo de mudança estivesse em curso, o Núcleo de Projeto entregaria aos órgãos de direção, gestão e administração um “Plano de Inovação”. Comunicava a criação de uma “turma-piloto”, e informava que essa “turma” tinha por referência os paradigmas da aprendizagem e da comunicação. A esse projeto não se aplicavam regulamentos fundados no paradigma da instrução, como os das secretarias.

Àquilo que é novo não se aplicam raciocínios dedutivos. Uma nova educação deveria ser acompanhada de uma nova nomenclatura. E seria necessário rever, alterar adequar os normativos a novas realidades, num processo de negociação, no diálogo.

Também se fazia a entrega de uma minuta de “Termo de Autonomia”. E, em alguns casos, uma proposta de “ação de formação”. Disso vos falarei, em breve. Se quiserdes, claro!

Há cerca de uns trinta anos, o meu amigo Wilson redigiu um prefácio a que deu o título “Uma escola do século XXI”. Respigo excertos:

“Como tantos, fui capturado pela ideia de uma “escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir” apresentada por Rubem Alves. E quanto melhor me informava a respeito mais amadurecia a vontade de ver aquilo mais de perto. Foi assim que tomei uma decisão um tanto radical: morar na Vila das Aves e matricular minha própria filha na Escola da Ponte. 

Vivi, entre 2003 e 2004, uma das mais marcantes experiências educacionais de minha vida. Como pai de uma aluna da escola da Ponte, me envolvi também com seu cotidiano, com sua associação de pais, com suas lutas, que na época não eram poucas. A comunidade escolar enfrentava disposições pouco amistosas do ministro da educação português, um enfrentamento difícil do qual a escola sempre saiu vitoriosa”. 

Em 1976, com quatro pais, criei um núcleo de projeto. Não tardou a surgir a primeira associação de pais portuguesa, após a ditadura. Durante quase trinta anos, negociamos um contrato de autonomia. Em 2004, o contrato foi celebrado. E a comunidade passou a dirigir a sua escola.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXVI)

Passos, 31 de março de 2041

Em 2041, os sociólogos ainda não conseguem encontrar um modelo teórico que consiga explicar dinâmicas sociais dos idos de vinte. Os modelos descritivos até hoje utilizados, as análises objetivas, as sondagens, as estatísticas enviesam as conclusões dos estudos. Os antropólogos ainda se mostram impotentes para decifrar mistérios detectados no desenvolvimento físico, social, cultural, comportamental, nos hábitos, costumes e crenças, nessa época manifestados. Mas talvez possa afirmar-se que, nesses conturbados tempos, se preparavam transformações.

Na década de sessenta do passado século, enviei e recebi centenas de cartas, numa troca epistolar que cimentou uma grande amizade entre mim e uma jovem brasileira. No início dos anos setenta, a minha correspondência passava pelo crivo da polícia política da ditadura de Salazar. Preocupado com a possibilidade de, nessa circunstância, a ditadura brasileira vir a aborrecer a Maria Célia, suspendi o envio das cartas.

No início deste século, começava a minha segunda vida, a brasileira. Por essa altura, calhou de o meu andarilhar me ter levado até Uberlândia e me terem convidado para fazer uma fala em Araguari. À entrada da cidade, na visão de lugares que conheci pelos postais recebidos da Maria Célia, acudiu à memória um endereço centenas de vezes escrito em envelopes de papel fino da correspondência intercontinental. Sem CEP (ainda não tinha sido inventado, nos idos de sessenta e de setenta) a Rua Afonso Pena e o número de polícia me conduziram à presença de um velhinho, que me entregou um papel com o número do celular da amiga com quem deixara de me comunicar, há mais de trinta anos.

Liguei. Escutei um “Oi!”. Perguntei: “Maria Célia?” E a Maria Célia respondeu: “José Pacheco?”

No final dessa tarde, voltamos a conversar, como se o diálogo jamais tivesse sido interrompido. Quem bem se quer sempre se encontra e retomamos o convívio possível para quem, como eu, faz da vida uma constante peregrinação. Outros encontros e reencontros se sucederam. Num deles, o meu amigo Rubem Alves teve ensejo de saborear um sarau de piano, violino e canto, organizado pela Maria Célia. Há vinte anos, se confirmava que o amor verdadeiro não se extingue com o passar dos anos. E que o amor era o que movia os educadores autores de uma nova educação.

O conturbado início de 2021 obrigou a uma significativa mudança de rumo. Os áulicos prosseguiram na bajulação de um poder público intelectual e moralmente corrupto. Falastrões engordavam a conta bancária ao serviço de empresas, que transformavam o direito à educação numa mercadoria. Os auleiros permaneceram cativos de obsoletas práticas, subservientes dos burocratas da educação. E os teoricistas confinaram-se no Olimpo das teorizações de teorias, por lá ficando, alienados pelo “eu te cito e tu me citas”.

Era chegado o tempo de substituir a pedagogia pela antropagogia (ou antropogogia, como eu preferia designá-la). Estávamos num tempo em que a educação da criança deveria contextualizar-se numa educação do ser humano, ao longo da vida, num permanente aperfeiçoar-se. Porém, o debate teórico definhava face à normose instituída.

Num encontro virtual realizado neste mesmo dia, mas de há vinte anos, assumi o compromisso de acompanhar educadores éticos na criação das então chamadas “turmas-piloto”. Iria voltar ao chão da escola, ser tutor por mais um ou dois anos. Iria assistir a uma “reeducação axiológica”, dado que a cultura é um sistema vivo de valores.

Sobre valores e outras minudências vos falarei na cartinha de amanhã.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXV)

Araxá, 30 de março de 2041

Há quase um século, Fernando de Azevedo avisava: 

O que é bom para os Estados Unidos pode não ser bom para nós”. 

No Brasil, o “nortear” (aquilo que vinha do Norte) sempre fora regra nas iniciativas de política educacional Nos idos de vinte, novas modas provindas do Norte, injetavam plataformas digitais em práticas medievais., num “desnorte” total. 

As “orientações” (aquilo que vinha do Oriente) prevalecentes nos projetos ditos inovadores eram de natureza neocolonial. Seria necessário “desorientar”, talvez mesmo “suliar”.

As palavras produzem e reproduzem cultura, mas ouso discordar parcialmente da crítica feita pelo Fernando, perante a grata surpresa de uma exceção. Um americano de nome Khan escreveu um livro, em que nos falava de uma “educação reinventada” e fazia as mesmas denúncias do Fernando, do Lauro e de outros ilustres e saudosos educadores brasileiros. Eis o que Salman Khan dizia na sua obra “Um mundo, uma escola”:

“O velho sistema está fracassando e precisa ser repensado. A educação formal tem de mudar. A lição tradicional age contra os objetivos da educação pública. A aula acaba por se revelar um meio ineficiente de ensinar e aprender. 

A minha ideia de educação nunca foi a de que ela estaria completa com uma criança assistindo a vídeos no computador e resolvendo exercícios. Muito pelo contrário. Sempre sonhei em ser mais do que um recurso online. 

Sentíamos que estávamos em um ponto da história em que a educação podia ser repensada. Mas se alguns indicavam os vídeos a seus alunos como uma ferramenta suplementar, outros os usavam para repensar sua metodologia. 

E o que acontecia nas escolas brasileiras? Nos idos de vinte, os vídeos do Khan eram usados como ele propunha, para acabar com as aulas? 

Não! Eram considerados “videoaulas”, que não serviam para “reinventar a escola”, como o Khan desejava. Uma revista publicou fotos de crianças de uma favela de São Paulo, enfileiradas em sala de aula, exibindo, sorridentes, os seus laptops individuais. Por que se insistia no uso de plataformas digitais de ensinagem e em dotar cada aluno com um laptop? Para gerar monstrinhos adoradores de tela, na mera substituição do livro didático pelo computador? 

No seu livro, Khan convidava-nos a acabar com a escola de sala de aula, turma, série, prova, apelava à humanização do ato de aprender. Porém, sistemas educacionais nas mãos de burocratas exercendo seus podres poderes impunham às escolas uma introdução acrítica de novas tecnologias. 

Talvez afetados pelos vícios de que padeciam os seus “superiores”, havia professores que adotavam os vídeos do Khan nas suas salas de aula, usando-os como complemento da ensinagem, perenizando as práticas que Salman Khan criticava. Aqueles que se reclamavam de o ter como referência apenas “otimizaram o modelo prussiano” de escola – pior a emenda do que o soneto – Ao invés de se apoiar projetos efetivamente inovadores, investia-se verbas faraónicas no enfeitar de uma escola que continuava “prussiana”

Houve um tempo em que as escolas europeias foram invadidas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação. Nos idos de vinte, dessa invasão restava apenas lixo digital. No Brasil, a tentação da disseminação em escala e de mostrar efeitos de curto prazo provocavam a mesma cegueira branca naqueles que detinham os recursos e o poder de decidir. Encontrei centenas de laptops entre as teias de aranha e o pó de velhos armários. Nunca tinham sido utilizados. 

Durante décadas, o poder público desperdiçara recursos e fomentara a reprodução da mesmice em versão digital.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXIV)

Uberlândia, 29 de março de 2041

Enfrentava o calor tórrido de quartos de “hotel” do Brasil profundo, encarava com estoicismo noites mal dormidas, os ataques dos pernilongos, suportava crónicos atrasos, suportava tudo, exceto discurso de político demagogo.

Naquela manhã, a palestra estava marcada para começar às oito horas. Após o hino, discursou o deputado, discursaram secretários, durante mais de uma hora de promessas de obras feitas e de outras por fazer.

Já passava das nove, quando tomei a palavra. Perguntei o que queriam saber. Ninguém perguntou. Pedi um tópico para debate. Solícita, uma secretária de educação lamentou que, tendo investido tanto na formação dos professores, o Ideb do município não tivesse melhorado. Professores fizeram eco com a secretária. E não tardaram as perguntas sobre as causas do descalabro da educação:

“Só conseguimos atingir o Ideb 4. Por quê?” 

“O que avalia o Ideb?” – questionei – “Esse “d” não é de “desenvolvimento”, é de decoreba.”

Observei desconforto no auditório. Apercebi-me do insucesso da ironia. Tentei explicar que as causas do fraco Ideb eram múltiplas e complexas. Mas a secretária insistiu:

“Professor, faça, ao menos, um diagnóstico sumário”.

Acedi ao pedido e, “sumariamente”, apontei algumas das causas. Após cada afirmação, era evidente o aumento do desconforto no auditório.

Falei da manutenção de uma alfabetização quase toda pautada num único “método”, o qual, sendo um entre muitos modos de ensinar a ler, era hegemônico e, “sumariamente”, causa de analfabetismo.

Falei da falsidade ideológica de projetos político-pedagógicos, que, na prática, não eram uma coisa nem outra. Expliquei que nenhuma atitude em educação poderia ser considerada ideológica e politicamente neutra, pois muitas práticas escolares eram, “sumariamente”, fonte de insucesso.

Abordei as inúteis estratégias utilizadas para combater a indisciplina: mais câmeras de vigilância, mais catracas, mais expulsões de alunos. E designei esses paliativos – que, não agindo nas causas, perenizavam as consequências – como instrumentos de exclusão.

Citei uma pesquisa que nos dizia que 90% dos diretores de escola gastavam mais tempo a tratar da merenda escolar do que em assuntos de natureza pedagógica. Apontei o prejuízo decorrente de decisões de natureza administrativa e burocrática e a agravante de se subsidiar práticas desprovidas de fundamentação científica.

“Sumariamente”, enunciei os graves efeitos do predomínio de uma cultura assente no individualismo, na competição desenfreada, na ausência de trabalho em equipe. Referi a ausência de rigor na avaliação.

Descrevi os erros de um modelo de formação, que faculdades alimentavam e secretarias patrocinavam, bem como os nulos efeitos de inúteis consultorias, que prometiam qualidades totais.

Acrescentei que o EJA e as classes de reforço eram sucedâneos de um obsoleto modelo de ensino com ênfase num frontal anônimo (a aula), que poderia ser permutado por situações de frontalidade fundamentada. E que admitir que uma parcela dos jovens escolarizados pudesse não aprender (“Ideb 4”) era indício de crime de abandono intelectual.

Finda a exposição, repeti a pergunta inicial:

“Que quereis saber?”

O silêncio prolongou-se por longos e penosos segundos. Até que uma professora me atirou a pergunta que mais temo:

“Mas, afinal, como é que o senhor vê a educação do Brasil?”

Ironicamente, respondi:

Vejo-a com olhos de estrábico, cara colega”.

“Sumariamente”, por aí se quedou a discussão. E nunca mais recebi convites para palestrar naquela cidade.

 

Por: José Pacheco

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